domingo, 8 de junho de 2014

Um Cruzamento, Conto de Kafka



Tenho um animal singular, meio gato, meio cordeiro. É parte da herança do meu pai, mas só se desenvolveu no meu tempo, antes era mais cordeiro do que gato, mas agora tem tanto de um como do outro. Do gato a cabeça e as garras, do cordeiro o tamanho e a figura, de ambos os olhos que são brilhantes e mansos, o pelo que é suave e curto, os movimentos que tanto podem ser uma cabriola com um andar furtivo, quando brilha o sol enrosca-se no parapeito da janela e ronrona, no campo corre como louco e ninguém o consegue apanhar, foge dos gatos, quer atacar os cordeiros, nas noites de luar o seu caminho preferido é o algeroz, são sabe miar e tem medo de ratazanas, pode estar horas a fio à coca junto da capoeira, mas nunca aproveitou uma oportunidade para matar, alimento-o com leite doce, é o melhor para ele, sorve-os em tragos lentos por entre os dentes de predador.

É um grande espetáculo para as crianças, naturalmente. Domingo de manhã é dia de visita, trago o animalzinho ao colo e à minha volta estão as crianças da vizinhança inteira. Fazem as perguntas mais estranhas, perguntas a que ninguém sabe responder. Eu também não me esforço, contento-me em contar o que tenho sem mais explicações. Por vezes as crianças trazem gatos, uma vez trouxeram mesmo dois cordeiros; mas ao contrário do que esperavam, não houve nenhuma cena de reconhecimento, os animais olharam-se serenamente com olhos de animais e era claro que aceitavam mutuamente a existência do outro como um fato divino.

No meu colo o animal não conhece medo nem vontade de caçar. Aninhado contra mim é como se sente melhor. Fica junto da família que o criou. Não é tanto qualquer lealdade invulgar, mas sim o instinto certo de um animal que tem no mundo muitos parentes, mas talvez nenhum irmão de sangue mais próximo, e para quem a proteção que encontrou junto de nós é sagrada. Por vezes não posso deixar de rir quando ele se aproxima para me cheirar, roça-se por entre as minhas pernas e já quase não se separa de mim. Como não chegasse ser cordeiro e gato, ainda quase quer ser um cão também. Na verdade, é mais ou menos isso que me parece. Tem o desassossego de ambos, do gato e do cordeiro, por muito diferentes que sejam. É por isso que a pele lhe é demasiado apertada. A salvação do animal talvez fosse a faca do açougueiro, mas como herança tenho de lha negar.



Referências :

Carvalhal, Tânea Franco. A Realidade em Kafka. Porto Alegre: ed. Movimento, 1973.
Izquierdo, Luis. Conhecer Kafka e a sua obra. Tradução de Manuel Mota. São Paulo: ed.Ulisseia, [198-?].

(In Franz Kafka. Contos. Seleção e prólogo de Jorge Luis Borges. Tradução de Isabel Castro Silva. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2005, p. 37-38): 

 Panorama



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