Marcelo Rubens Paiva
"Senta!" Tomei um susto quando escutei na primeira vez em que assistia a um jogo de Copa do Mundo "no campo", como dissemos, na arquibancada do jogo do Brasil, se é que se pode chamar aquela plateia de arquibancada, que no passado era de cimento batido (Maracanã) ou concreto mal finalizado (Vila Belmiro, Morumbi). "Paguei caro, senta!", insistiu o torcedor brasileiro com muito orgulho e amor.
Desde 1966, quando meu pai, que não era nada fã de futebol, levou toda a família (mulher e cinco crianças) para assistir a um Vasco e Flamengo no Maracanã, como um passeio turístico, no ano em que nos mudamos pro Rio, errou de lugar na arquibancada, nos sentou no meio da torcida do Vasco, apesar de eu estar com a camisa do Flamengo, não parei mais de ir a estádios.
Desde 1977, no histórico Corinthians e Ponte, em que pela primeira vez vi uma torcida assistir aos 90 minutos em pé, sem parar de pular e cantar, nunca mais ouvi: "Senta!".
Há tempos não se grita "senta!" nos estádios brasileiros. Há regras que nenhum estatuto escreveu, criadas pela necessidade de se organizar o caótico evento sem lugar marcado. Entre elas, a proibição de gritar "senta!" e "gol!" antes de a bola entrar. Dá azar. Como membros de uma facção criminosa, vivendo coletivamente num ambiente em que o Estado é ausente, o torcedor brasileiro criou a sua própria ética, não escrita, passada de geração em geração.
Mas a Fifa tinha razão quando exigiu que o governo brasileiro liberasse a breja dentro dos estádios, banida desde 2009. Ela sabe que tem os que vão aos jogos da Copa pensando numa balada, para quem o futebol é secundário. Estar lá já basta. Fotografa feliz um dos eventos mais disputados e caros, exibido em praticamente todos os países. Dança, canta, faz ola e coraçãozinho quando uma câmera de TV aponta. Mesmo durante um ataque perigosíssimo do time pelo qual supostamente torce.
Quem vai ao campo rotineiramente se embebeda depois. Nele, quer atenção redobrada para assistir e torcer, exigir mudanças, raça, empurrar o time, sugerir táticas, gritar por "ladrão" ou para virar o jogo e reclamar com o juiz, como o décimo segundo jogador.
Um jogo de Copa do Mundo parece um embarque para a Disney. Muitas pessoas fantasiadas seguem em fila indiana um agente com a plaquinha de uma corporação. São os convidados por patrocinadores. Plaquinhas de empresas de telecomunicação, eletrodomésticos, bebidas, cartão de crédito, erguidas por uma RP, como em aeroportos, levam seus clientes a seus assentos e camarotes. É a Copa mais Ponto MKT de todas as Copas.
"Quem é este número três?", me pergunta o cara ao lado, durante o jogo do Brasil. Quem é o número três? É o Thiago Silva, do PSG. É o capitão da Seleção. Já foi considerado o melhor zagueiro do mundo e o mais caro do mercado. Para tirá-lo do Milan, desembolsaram 42 milhões. Você não sabe quem é o Thiago Silva? O que está fazendo aqui? Tenho uma pá de amigos que daria de tudo para estar aqui. Tentaram de todas as maneiras um ingresso, passaram madrugadas no site da Fifa, e você me pergunta quem é o número três?! Só falta gritar "senta"!?
Um casal reclama que tem gente fumando: "Olha esse vício! Não precisa matar os outros!". O fumante não se altera. O casal pede minha cumplicidade e que eu chame a segurança. Informo que é permitido fumar. Comentam irônicos que a Fifa permitiu tudo. Não foi a Fifa, mas a lei n.º 13.541, que proíbe o consumo de "cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco" em locais públicos, mas estranhamente não em estádios, conhecida como Lei AntiFumo.
De repente, num lance de perigo, vejo os braços se levantarem. O que é isso? O que tá acontecendo?! Abaixem estes braços! Era a ola. Os caras fazem a ola durante um lance de ataque. Não prestam atenção no jogo? Lá vem ela de novo, pelo amor de deus, roubaram a bola, é contra-ataque do Brasil, abaixem estes braços, agora não! Olha o gol!
A jogada rola de um lado, mas a maioria olha para o outro. É que a spidercam, ou skycam, a câmera voadora, novidade por aqui, aparece com um drone na frente deles, para levá-los ao telão e delírio. Nem percebem que o Brasil quase levou um gol.
Depois, li relatos de gente reclamando das instalações. No banheiro de mármore da Arena Corinthians, tem sabão em líquido, que cai automaticamente de uma torneirinha, máquinas que secam as mãos com ar quente e muitos faxineiros. No Pacaembu, só existe banheiro no nível do gramado. Sujeito tem que descer toda a arquibancada. Na maioria dos banheiros dos antigos estádios, há poças e poças a serem desviadas. Tampas, sabonetes e papel nem para as autoridades.
Quem acompanha pela TV, pode ter certeza: entre os milhares que lotam os jogos da Copa, está a elite de seus países. Tem tanta área VIP, que o cheiro de champanhe predomina sobre o de Chanel. São ganeses e camaroneses milionários ou membros da elite que governa o país, iranianos e mexicanos que não conseguiriam explicar a origem de seus rendimentos. Os argentinos, chilenos e
holandeses parecem autênticos boleiros, já americanos, alemães, franceses, não. Aqueles costa-riquenhos são os riquinhos de lá.
Quem veio, tem conexões, contatos, esquemas ou grana, muita grana. Os ingressos são caríssimos. Para comprá-los, há um labirinto a ser percorrido num site confuso, em inglês, que vive travando. A viagem ao Brasil não é barata. A estada, os custos com alimentação e transporte...
Copa do Mundo é também um evento para todas as elites fazerem coraçãozinho para as câmeras, independentemente do resultado do jogo. Uma gente bem estranha...
Estadão
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