A aplicabilidade da Lei de Anistia de 1979 a acusados de tortura, desparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos durante a ditadura militar foi objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010. A corte julgou não caber revisão pelo Poder Judiciário.
No cinquentenário do golpe de 1964 e no contexto da revelação pela Comissão Nacional da Verdade de fatos chocantes que sensibilizaram o país, esse debate volta à tona.
Os dois ministros que então divergiram da decisão, Ayres Britto e Ricardo Lewandowski, invocaram aspectos relevantes: o primeiro sublinhou que os autores de tais crimes "desobedeceram não só a legalidade democrática de 1946 como a própria legalidade excepcional do regime militar"; o segundo afirmou que, mesmo se o Brasil estivesse em guerra, "os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais".
Nenhum país pode invocar norma do direito interno para desrespeitar suas obrigações perante o direito internacional. Embora a tipificação do crime de tortura só tenha ocorrido em 1997, existia lei aplicável quando dos crimes. O regime militar negou sistematicamente a prática da tortura como "política", atribuindo-a quando muito a situações excepcionais que "seriam investigadas". A lei nº 6.683 de 1979 concedeu anistia aos que cometeram entre 2/9/1961 e 15/8/1979 crimes políticos ou conexos com estes, salvo aos "que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal". O texto suscita a pergunta se o crime de tortura praticado por um agente do Estado pode ser considerado crime conexo a um crime político quando as autoridades afirmavam respeitar as leis que protegiam os detentos. E aponta para a preocupação do legislador de excluir dos benefícios da anistia os que praticaram atos de sangue. A sutil distinção contida na expressão "que foram condenados" mostra discriminação em favor da "justiça" em período discricionário contra a exercida com plena independência.
A Lei de Anistia foi um passo politicamente importante, mas insuficiente frente às demandas de justiça da sociedade e das vítimas, e a desejada reconciliação só será alcançada se à generosidade do perdão se contrapuser um mínimo grau de sanção pelos delitos mais gritantes.
Leis posteriores complementaram a da Anistia, como a que reconheceu a responsabilidade do Estado pelos desaparecimentos forçados e a que determinou o pagamento de indenizações.
A tortura é crime perante o direito internacional. As anistias promulgadas ao fim de períodos de exceção vêm sendo intensamente discutidas. Embora vistas por vezes como etapa necessária à reconciliação nacional, sua legitimidade tem sido contestada quando apenas servem para cobrir a impunidade, sem prever o direito à verdade e, sobretudo, quando encobrem graves crimes.
Fortes argumentos jurídicos sustentam que a anistia não deveria estender-se no caso de torturadores contumazes e autores de outros crimes de especial gravidade. O Brasil é parte da Convenção Internacional contra os Desaparecimentos Forçados desde 2010. Conforme esse instrumento, o Estado parte, se adota regime de prescrição para esse crime, obriga-se a que o prazo de prescrição só comece a contar a partir da data em que o desaparecimento for solucionado, dado o caráter continuado do crime. Assim, os autores não estão cobertos pela anistia.
O recebimento de denúncia contra os presumidos assassinos de Rubens Paiva, sentença histórica exarada pelo juiz federal Caio Taranto, enuncia com precisão e rigor argumentos jurídicos de igual sentido.
A responsabilidade internacional do Brasil por atos ilícitos sob o direito internacional deve ser considerada seriamente, pois afeta a credibilidade do país frente às obrigações que voluntariamente assumiu.
A Convenção contra a Tortura e aquela contra os Desaparecimentos Forçados adotam a jurisdição universal. A presença no território de um dos países partes de um brasileiro contra o qual pesem sérias suspeitas de ter cometido os crimes cominados serve de base para o estabelecimento de jurisdição e o possível indiciamento do acusado.
GILBERTO SABOIA é membro da Comissão de Direito Internacional da ONU. Foi secretário de Estado para Direitos Humanos (2000-2001, governo Fernando Henrique Cardoso)
Folha de São Paulo
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