quinta-feira, 19 de junho de 2014

Jogar sem a mamãe



Contardo Calligaris
 
Na "inocência" (relativa) da minha infância, a expressão "Fulano conseguiu um pênalti" significava que Fulano tinha chegado na boca do gol de uma maneira muito perigosa, forçando a defesa adversária a cometer uma falta grave e proposital. Ou seja, para os adversários, as chances de defender um pênalti seriam maiores do que a chance de evitar o gol naquele ataque.

Nenhuma "inocência" dura para sempre. Logo aprendi por um locutor de rádio que alguns jogadores (ou todos) fingiam sofrer faltas graves, contorciam-se no chão como se o adversário tivesse lhes quebrado uma perna, e, uma vez chamada a atenção do juiz, levantavam-se e voltavam ao jogo, em plena forma.




Aprendi pelo mesmo locutor que nós, italianos, éramos especialistas nessa arte —e isso, segundo o locutor, era mais uma qualidade de nosso time, cujos jogadores eram também grandes atores. Não sei o que me deu mais vergonha: a atuação dos jogadores-atores ou a alegria do locutor com essa "qualidade" de nossos jogadores.



O fato é que, para mim, a partir dessa época, "Fulano ganhou um pênalti" passou a significar que Fulano, vendo que sua ação tinha pouca chance de acabar num gol, encenava a brutal agressão pelos defensores, de maneira que o juiz transformasse o ataque capenga numa penalidade máxima.



Para você, conseguir um pênalti significa que o adversário preferiu merecer um pênalti a deixar você avançar? Ou significa convencer artisticamente o juiz de que você sofreu uma falta que não existiu? A partir dessa dúvida, meu interesse pelo futebol diminuiu.



Diminuiu, mas não acabou. A Copa começou bem, e na terça-feira (17), os problemas de arbitragem do primeiro dia já estavam meio esquecidos atrás da alegria de vários jogos bonitos e dos gols, mais numerosos do que de costume.



Só não gostaria de estar na pele de Giovani dos Santos, o atacante do México que só marca mesmo a cada três gols (os dois primeiros são anulados —por princípio). Tudo bem, ele fez três gols e, portanto, marcou um. Mas você não acha que ele pode se sentir um pouco injustiçado?



Tampouco quero discutir em qual dos dois sentidos mencionados acima Fred "conseguiu" seu pênalti no jogo do Brasil contra a Croácia. Mas eis uma questão geral: por que razão o futebol é o último grande esporte que se recusa a adotar uma medida simples que acabaria com muitos erros e incertezas de arbitragem?


Na maioria dos esportes, os jogos relevantes são gravados, e, quando há um lance duvidoso, os juízes consultam o registro (que, geralmente, aparece no telão).


Erros acontecerão mesmo assim, mas evitaremos o ridículo de uma decisão do juiz que vai contra a obviedade constatada por um bilhão de pessoas mundo afora.


Essa proposta encontra resistências surpreendentes. Alguém, logo na quinta passada, disse-me que isso seria contra a "alma do futebol". Então, a alma do futebol seria o quê? Vejo duas possibilidades:


1) A alma do futebol seria a facilidade da corrupção. O futebol já tem histórias sinistras de jogos influenciados e comprados (como relatado em um recente artigo do "New York Times", http://migre.me/jRAoE; no artigo da Enciclopédia Treccani sobre corrupção no futebol italiano, http://migre.me/jRAtV; e numa entrevista do "Le Monde" sobre corrupção possível na Copa, http://migre.me/jSB9a). Ora, corromper o juiz se tornará mais complicado se ele tiver a obrigação de consultar o registro gravado antes de tomar sua decisão. Como teria ficado a Copa de 1986 se o juiz tivesse sido obrigado a ver, no telão, a mão de Maradona no jogo contra a Inglaterra?


2) Também poderíamos admitir que jogar bem significa convencer o juiz de que a gente sofreu uma falta ou cometer faltas sem ele enxergar. É essa palhaçada que gostaríamos que fosse a alma do jogo?


As implicações culturais dessa atitude são um pouco nojentas: nosso esporte preferido transmitiria um encorajamento explícito à malandragem. Precisamos de mais um?


As implicações psicológicas são piores. O jogador que massageia a perna na esperança de que o juiz puna o adversário, ou o que comete falta proposital às escondidas não são indivíduos autônomos. Eles foram jogar acompanhados pela mamãe; a ideia é: se não conseguir ganhar para mamãe aplaudir, cairei para mamãe ver como meu adversário foi feioso. E, se os dois caírem, quem chora mais alto enternecerá a mamãe e ganhará.


Vamos crescer? Ou vamos continuar jogando para a mamãe ver e decidir?



Folha São Paulo


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