segunda-feira, 9 de junho de 2014

Filmes de Woody Allen: Terapia Cinematográfica ?


Michele Ramos

Fellini dizia que o cinema é um modo divino de contar a vida. Se paraíso ou inferno, o inegável é que se trata de uma das melhores formas de identificação com as mazelas da nossa existência. Os filmes de Woody Allen refletem bem o absurdo que é viver. Confira!

Assista aos filmes de Woody Allen e economize com terapia. Muito dos dramas que você precisa e está envolvido enquanto ser humano está presente nos filmes: questões existenciais, possíveis causas para o início e o fim de um relacionamento, discussões éticas... com humor irônico, o cineasta dá um tom tragicômico aos longas, e distancia-se (ainda bem!) dos pastelões medíocres reproduzidos em série por Hollywood.

Veja os filmes e perceba que não é o único (a) neurótico-obcecado-inseguro presente no mundo. Somos todos assim. Uns mais, uns menos. Uns ligam a própria vida no piloto automático e raramente se perguntam o porquê das coisas acontecerem. O porquê de vivermos neste mundo caótico, cheio de pessoas desesperadamente vazias à procura de algo que não sabem definir. Mas os ainda inquietos, desassossegados, questionadores de tudo parecem ter vindo da mesma fábrica humana e estamos todos, de certa forma, perdidos.

Woody Allen é um dos grandes diretores do cenário americano atual. Possui produtividade invejável com uma ampla lista de filmes escritos e dirigidos. Pessoalmente, sua vida é cercada por escândalos envolvendo a ex-mulher (Mia Farrow) - atriz em grande parte de seus filmes - e a filha adotiva (Dylan Farrow). O diretor é acusado de ter cometido abusos sexuais contra a menina, mas nada foi confirmado até hoje. As denúncias ocorreram em meio ao processo de separação entre o cineasta e a atriz Mia Farrow. O caso chegou a ser investigado na época, mas o diretor nunca foi acusado ou processado formalmente porque a Justiça considerou que não havia evidências de que o crime tivesse ocorrido.

(Comumente confundimos obra e autor, fundindo-os em um todo artístico, mas a filmografia do diretor, riquíssima principalmente em roteiro, nos faz admirá-lo com foco no artista/cineasta e não no marido, pai).

É fato que a catarse ocorre com diversas formas de arte, mas há algo nos filmes do diretor Nova Yorkino que nos faz relaxar e sentirmo-nos menos sozinhos perante todas as mazelas que enfrentamos nesta vida (e quem sabe nas passadas).

Há quem diga que só podemos atribuir a genialidade na realização de um filme ao conjunto de profissionais responsáveis por ele e não apenas ao diretor. Nesse sentido, Woody é completo: roteirista, ator e diretor. Portanto, aí vai uma lista de filmes dele que, caso você não tenha assistido ainda, servirá de incentivo para dar início a uma terapia cinematográfica embalada a boas doses de jazz (o foco será nos anos 80-90 que, a meu ver, trata-se da fase de ouro do diretor ao lado de alguns filmes mais recentes como “Vick, Cristina, Barcelona” (2008) e “Match Point” (2005)).

Em "Manhattan" (1979), considerado por muitos a obra prima do diretor, encantamo-nos com ângulos que privilegiam a cidade, que se torna ainda mais bela filmada em preto e branco. Woody declara seu amor por Nova York através de imagens e diálogos belíssimos: "Pessoas de Manhattan criam problemas neuróticos, pois isso evita que enfrentem problemas indecifráveis e terríveis sobre o universo". Ambiente repleto de personagens cultos, mas demasiadamente humanos, inseguros, neuróticos. E, no fundo, quem não é?

Reflexões sobre a vida e uma lista de coisas pelas quais vale a pena viver. Isaac (Woody Allen) cita em sua lista, entre outras coisas, filmes suecos (como grande admirador de Ingmar Bergman que diretor é.), Marlon Brando, Frank Sinatra...

Os filmes de Woody Allen estão na minha lista de “coisas pelas quais vale a pena viver", assim como muitos do Bergman, Almodóvar, Tarantino, Truffaut... arte subjetiva, tal como é, cada um ama o cinema que lhe apetece. O que toca a sensibilidade , ou nos expulsa da zona de conforto em que nos encontramos, é o que ganha nossa simpatia e empatia.

Como não amar "Annie Hall" (1977, vencedor do Oscar de melhor filme, “Noivo neurótico, noiva nervosa” no Brasil), e o relato do complexo fim de uma relação comparada ao início dela? Como não identificar-se com a excitação do início? O deslumbramento que se estabelece perante o mistério do outro... “Eu não entraria num clube no qual me aceitassem como membro", diz Isaac (personagem de Woody) no início do filme. Talvez uma metáfora para dizer que queremos aquilo que não podemos ter ou, dito de outro modo, quando o objeto do desejo passa a ser disponível perdemos o interesse. Será?

O personagem, humorista, olha pra câmera e conversa com o telespectador, criando uma atmosfera de cumplicidade como quem diz: “Eu sei que você também já se sentiu assim”. Além disso, dialoga consigo mesmo enquanto criança e imagina situações que não sabemos se, de fato, aconteceram ou não, já que a memória é seletiva.

Woody brinca com a arte de fazer cinema. Afinal, se a vida é uma grande tragédia, façamos da comédia o ingrediente para suportá-la. ”A vida é dividida em horrível e miserável. Horrível seriam os casos terminais, gente cega, inválidos. Não sei como eles vivem. Acho incrível. E miserável é todo o resto. Quando passar pela vida, agradeça por ser miserável”. Seria, assim, um otimismo dentro do pessimismo?

Através de flash backs acompanhamos o início e o fim da relação de Annie (Diane Keaton) e Alvy (Woody Allen). “O que eu fiz de errado?”, questiona-se Alvy. “Não foi nada que fez. O amor esmorece”, diz uma senhora que passava pela rua.

Em “Hannah e suas irmãs” (1986), a possibilidade de encontrar um tumor no cérebro leva Mickey (Woody Allen) a encontrar felicidade onde não enxergava antes: ”Hoje de manhã eu era feliz e não sabia ”, diz. E, posteriormente, descartada a possibilidade da morte imediata, o personagem começa a viver, de fato. Pede demissão do emprego e enfrenta uma crise em busca de algum tipo de fé religiosa. ”Tem noção de como nossa vida é frágil? Não percebe que nada tem sentido?”, ele diz. “Comprei uma arma e ia me matar. O que me impediria é que meus pais ficariam arrasados. Teria que matá-los também. Seria uma carnificina”. “Se Jesus voltasse e visse o que fazem usando o nome dele, não pararia de vomitar”.

De outro lado, três mulheres (Mia Farrow, Barbara Hershey e Dianne Wiest), cada qual a sua maneira, tentam lidar com a vida do melhor modo possível e um marido que pensa que a esposa não precisa dele e, por isso, acredita estar apaixonado pela própria cunhada. “Apesar da minha formação, não consigo administrar meu coração”, diz ele ao analista. “Preciso de alguém que me ache necessário. É difícil estar com alguém que dá tanto e não quer nada”. Irônico, não?

O filme questiona, assim, aspectos morais, éticos e religiosos. Como lidar com a morte enquanto fato inevitável? Segundo Tolstói (citado no filme), “a única certeza dos homens é que a vida não tem sentido”.

Enquanto os personagens questionam sua vida e suas escolhas, questionamos nossa vida e nossas escolhas. Refletimo-nos naquele enredo, como se fosse a nossa própria vida. Temos acesso aos pensamentos dos personagens, nos tornando íntimos e desvendando seus conflitos mais profundos. “Hannah e suas irmãs” está, sem dúvida, no topo da lista de melhores filmes do Woody Allen.

Por outro lado, o não tão conhecido “Zelig” (1983) surpreende pela originalidade. Um homem que apresenta mudanças físicas (tal como um camaleão) dependendo do núcleo de pessoas com as quais se encontra nos faz refletir sobre o tamanho da influência do outro em nossa própria vida.

Já em “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), um personagem salta da tela do cinema para atender aos anseios de uma mulher (Mia Farrow) que sonhava com o homem perfeito que só existia nas telas. E então refletimos... até que ponto nos contentamos com o real? A perfeição, caso existisse, seria tão boa assim?

Os filmes citados são os mais ricos, no quesito “roteiro”, presentes na filmografia do diretor. Estão entre os mais tocantes, repletos de sensibilidade e dramas facilmente identificáveis. Não existem fórmulas para lidar com situações pelas quais passamos no dia a dia e tampouco um filme vai resolver seus problemas reais. Contudo, eles provocarão em você talvez os mesmos questionamentos e inquietações que um terapeuta, mas de graça e no aconchego do seu sofá. Porque talvez um boa maneira de lidar com o caos seja refletindo e tentando ver o lado bom de determinada situação.

A vida é mesmo cheia de dramas e, vez ou outra, sentimo-nos só no meio da multidão e da aglomeração tecnológica travestida em companhia com a qual nos deparamos. Contudo, é bom saber que não estamos sozinhos. E que a vida vale a pena por cada momento louco, engraçado e emocionante vivido.

Inspirada em Woody Allen, em 2011, Sophie Lellouche dirigiu a comédia romântica "Paris- Manhatan" (França). Nele, a protagonista Alice (Alice Taglioni) recomenda filmes de Woody aos clientes de sua farmácia (inclusive para o ladrão que tenta assaltá-la!) para que resolvam seus problemas pessoais. Ela possui um pôster do cineasta colado na parede do quarto e, constantemente, conversa com ele e imagina respostas sobre a própria vida. "A primeira vez que vi um filme de Woody Allen eu tinha 15 anos. Primeiro nos encontrávamos uma vez por ano. Depois ele entrou no meu quarto e rapidamente na minha vida".

Enquanto clara tentativa de homenagear o diretor, o filme é divertido, mas deixa muito a desejar em roteiro e a história não trata-se de algo inteiramente convincente. Contudo, a resposta de Alice à pergunta: “Por que gosta tanto de Woody Allen?”, parece ser unânime para os fãs de sua longa obra: “Ele fala comigo”.

Deixa o cinema falar com você também.


ObviousMagazine

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...