“ZANA”, A Melhor Mãe da Literatura Brasileira
(Romance “Dois Irmãos” de Milton Hatoum)
“Ficção é perder o olho(...)”
Colum McCann
Quando você acaba de ler o belíssimo romance “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, Editora Companhia de Bolso, além de você se encontrar em júbilo com a qualidade da obra, ficar com gosto de quero mais no paladar aguçado, ainda sai da leitura encorpado com o tamanho volume da Mãe dos dois irmãos que são elevados e revelados em todos os sentidos pela proposta do livro-obra, um clássico da literatura brasileira contemporânea. Sim, contundentes, paradoxais, Yaqub e Omar saltam aos olhos, mas, e a bendita (maldita?) Mãe?
A Mãe ZANA dos meninos no palco de Manaus, é, certamente, a melhor mãe retratada no historial da literatura brasileira como um todo. Retratando os dois irmãos em contundências e agonias, revelando-os de alto a baixo, na fluente narrativa cativadora e de qualidade, o autor está se nos apresentando página por página a mãe ZANA que gerou os gêmeos, a mãe que os amou, que os estragou e por assim dizer na criação fundou a tragédia continuada da familia até o fim.
Sim, Milton Hatoum soberbo na linguagem e retratando um lar, na mãe disparou consubstancialmente o foco (triste), o eixo (duro), o centro (amargurado), retratando olhares, afetos, resignações, buscas e perdas em cada filhote que de si mesmo por assim dizer eram uma continuação dos lados ambíguos dela. Já pensou?
“Meu querido, meus olhos, minha vida”, diz Zana chorando, logo às páginas 13 do romance. Para Yaqub, o gêmeo que se ausentara no Líbano, capricho de Halim e dela mesma no desdizer. Lembranças e pesadelos de um mundo imponderável. Literalmente a mãe entre a cruz e a espada, dose dupla de si mesma, pendendo mais para o Caçula, o atinado, o atrevido, o atirado, vendo as coisas de cima de sua pose, o louco e vaidoso. Quem pariu que embalasse? Vá saber. Quem tem mãe não tem medo, disse Henfil. Mas uma mãe como Zana é uma loucura.
Yaqub de uma coragem escondida, recalcada, acalcada pela tendência da mãe pelo perdido. Mães sabem o que criam. E ajudam a alimentar o monstro de cada ego, cada resignação-toleima, dando corda e calço, literalmente embalando. Só as mães são felizes, cantou Cazuza, ele mesmo um Omar em verso, prosa e música. Quase um pierrô retrocesso.
Como uma fábula pós-moderna da história bíblica de Abel e Caim, com peculiaridades boas e ruins de um lado e de outro, de algum modo sem o desfecho exatamente fatal mas o próprio tácito fatalismo em si corroendo imagens e engrenagens íntimas, entrecortando toda a história muito belamente estruturada em narrativa cativadora e fluente na contação densa, que, por isso mesmo, também virou um dos mais belos romances da literatura brasileira, que traz a Mãe “Zana” como a melhor matriarca-matrona (não necessariamente megera) da própria literatura como um todo.
“Uma saga iluminada e profundamente emocionante” diz Alberto Manguel, in, The Independent, do livro Dois Irmãos, ambientado na urbanidade amazônica em tempos de guerra mundial, depois da ditadura nos bastidores em pinceladas estimativas, o amor e o ódio degladiando no meio de um mesmo sangue e circulo vicioso familiar, Yaqub e Omar, cicatrizes e sombras – e a superprotetora Mãe Zana, naquele que já é considerado por muitos críticos como o melhor romance brasileiro dos quinze últimos anos. O Século XXX sangra desde logo.
Yaqub, casulo de si mesmo borboleteando futuras intenções, ovelha perdida, boto rosa, pássaro ferido, montanhês rústico, aqui e ali apreensivo, derrotado. Silencial. Um falso-covarde com guardadas intenções maquiavélicas? O caçula e cínico Omar com escárnio e o mesmo sangue nas mãos. Lobo de si mesmo. Um personagem e tanto para as ponderações de Freud. Já pensou? A mesma carne em trincheiras opostas. O caçula e cara e a coragem da mãe. Yaqub sem nenhum papo-aranha, acanhado, desconfiado. Ódio, ciúme, e o zelo exagerado de Zana dando o tom às vezes descolorido das relações em conflito. Supermãe às vezes dá nisso. Não sabe nunca de que lado está, mesmo tendo escolhido um. Yaqub: “Cabeça e inteligência, isso ele tem de sobra”, diz Zana, a Mãe. Matematicamente introspectivo. Solidão-cangalha.
Omar com suas diabruras era da pá virada, aprontando todas, lunático, sexista, vivendo com emoção, a juventude em viço, as serenatas que enchiam de luzes as cativadoras noites de Manaus. Céu e inferno em si mesmo, o radical em choque e enfrentações. Audácias juvenis. Transgressor. As ressacas das noites de prazer. A busca de si nas transgressões de tudo e de todos, zelo excessivo, mimo doentio da genitora que via no escolhido a morte eminente. E Zana dando o aval de alguma maneira, custeando-o.
Zana impávida, colossal, serenidade fingida, a Mãe e os ímpetos das imprudências. Depois ambos no Galinheiro dos Vândalos, que os igualou. Mas a mãe sempre sabe onde a porca torce o rabo. Pelo menos Zana protegia o atrevido e censurava o certinho. Orgulho e fé. A carnadura do casal ali expropriando esperanças e amarguras... Ruminando situações que tentava apaziguar. Yaqub: “A mãe, com o olhar maravilhado, não sabia se mirava o filho ou a imagem dele”. Espelhos revisitados alimentam neuras. O abismo mais temível estava em casa, diz o autor, às páginas 33. Halim não podia evitar. Era um mero pião no jogo das aparências.
O narrador que se revela ao final, comenta: “Omar, mordido de ciúme, não tocou no nome do irmão. E a mãe, pura ânsia, dizia que o filho que parte pela segunda vez não volta nunca mais”(in, pg 35). Ora dando um enfoque criacional, ora saltando para uma outra ótica, sempre levando e trazendo contações, passados, futuros, implicações, o escritor vai iluminando atos do cenário em que a tragédia ainda está pertinente, parada no ar mas nunca vaza, nem escoa radicalmente. O leitor é que vai antevendo, costurando na cabeça as linhas de raciocínio, daquilo que Milton Hatoum faz que revela mas cabe ao apreciador de boa escrita ter sua própria “leitura”. Não há leitura inocente, nem escrita inocente. O que passou é prólogo, diz Shakespeare. Jorge Luis Borges dizia que a raiz da linguagem é irracional e de caráter mágico...
Yaqub, o tempo servido no Líbano e o que lá sofreu, permanece um ponto de interrogação no romance todo. Pairando sobre aparências e relações familiares conturbadas de lado a lado. A eternidade pode estar no que se cala. Histórias que se cruzam, vidas em trânsito, vaivém de núcleos de abandonos, águas como lembranças remotas que saem e chegam, o remo da palavra ornando a embarcação do livro em contracorrentes. O leitor navegando a alma nau de cada personagem. O autor mascateando parágrafos para seduzir o leitor pelo prazer da leitura. Zana, sempre em intimidade com os filhos, uma teimosia de tocar, proteger, talvez desconfiguar a personalidade de um e de outro, aqui e ali errando mão, rumos e entendimentos. Talvez cega de tanto ver?.
“Zana mandava e desmandava na casa, na empregada, nos filhos. Ele (Halim, o marido, o pai), paciência de Jó apaixonado e ardente, aceitava, engolia cobras e lagartos, sempre fazendo as vontades dela (Zana) (...), mimando-a, tocando o alaúde só para ela, como costumava dizer”( pg 41). Milton Hatoum tem poesia nas veias narrativas; em todo o transcorrer do livro há janelas de poesia, pura prosa poética. Achados. As coisas não têm alma, nem carne? Todos foram vítimas de Zana. Parece que o diabo torce para que uma mãe escolha um filho. Talvez Deus por outro lado desperte um lado de certo instinto selvagem na mãe, a natureza-mãe, para que proteja o que parece forte mas é só um ponto de fuga... Será o impossível?
O autor Milton Hatoum pincelando as chagas e as luzes da mãe. Prismas. “O filho de Halim (pai): forte, viril com todas, mas com a mãe se desmanchava em chamegos ou tremia como taquara verde. Vá entender o poder de uma mãe. Daquela Zana(...) Quando o destino de um filho está em jogo, nenhum detetive do mundo consegue mais pistas do que uma mãe”(pg. 104)”. Caçada de mãe é tempestade (pg. 110). No fundo Omar era cúmplice de sua própria fraqueza, de uma escolha mais poderosa do que ele; ele não podia muito contra a decisão da mãe, para quem parecia dever uma boa parte de sua vida e de seus sentimentos(...). Tentou se conformar com essa frustração que ele supunha pacificadora, e nunca mais ousou entregar-se mulher nenhuma(...)”
A Mãe Zana que queria paz mas sem querer fomentava o embate. A construção insabidamente desconstruída. As mães bem sabem onde põem a alma, o coração, as mãos. Mas o instinto protecional exacerbado pode criar infernos em clãs. As desgraças todas da história acontecem por amor (demais, aloprado) e em familia. Milton Hatoum soube colocar a mãe no meio; nos meandros historiais, com música, harmonia e ritmo num romance cheia de enlevo. Acertou na Mãe também. “Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos” (Milton Hatoum, pg 196). Leia o livro e se sinta em casa. Êpa, quero dizer, sinta-se humamente dentro de você mesmo. Talvez, na verdade, ao contrário do que diz o rock do Cazuza, só as mãe são perfeitamente infelizes com o que afinal sangraram como filhotes de suas próprias amarguras.
Silas Correa Leite, Santa Itararé das Artes, São Paulo, Brasil – Jornalista Comunitário, Especialista em Educação, Conselheiro em Direitos Humanos (SP)
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Postado por O Homem Que Virou Cerveja, Crônicas
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