quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O bolsa-família americano ameaçado


Livre para sentir fome
Paul Krugman

A palavra “liberdade” se agigantou na retórica conservadora moderna. Grupos de lobby foram batizados com nomes como Freedom Works; a reforma do sistema de saúde foi denunciada não apenas devido ao seu custo, mas também por configurar, sim, um ataque à liberdade. Ah, e você se lembra de quando nós tínhamos que chamar as batatas fritas (em inglês, “french fries”, ou batatas fritas francesas) de “batatas da liberdade”?

A definição de liberdade usada pela direita, no entanto, não é aquela que, digamos, o ex-presidente Franklin Delano Roosevelt reconheceria. Em especial, a terceira de suas famosas quatro liberdades* – a liberdade de desejar – parece ter virado do avesso. E os conservadores, especialmente, parecem acreditar que a liberdade é só mais uma palavra para descrever quem não tem o suficiente para comer.

Por isso a atual guerra envolvendo os vales-alimentação, cujo corte drástico os deputados republicanos acabaram de votar, apesar de eles terem aprovado um aumento para os subsídios agrícolas.

De certa maneira, é possível entender por que o programa de vale-alimentação do governo dos Estados Unidos – ou, para usar o nome correto, o Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP) – transformou-se em alvo dos republicanos.

Os conservadores estão profundamente comprometidos com o ponto de vista de que o tamanho do governo aumentou excessivamente durante a gestão do presidente Barack Obama, mas eles também têm que encarar o incômodo fato de que os postos de trabalho no setor público recuaram acentuadamente nesse mesmo período, enquanto os gastos totais vêm caindo rapidamente em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). O SNAP, no entanto, realmente cresceu bastante, uma vez que o número de beneficiários passou de 26 milhões de norte-americanos em 2007 para quase 48 milhões atualmente.

Os conservadores olham para esses números e observam o que, para sua grande decepção, eles são incapazes de detectar por meio de outros dados: o crescimento explosivo e descontrolado de um programa do governo. O restante de nós, no entanto, vê um programa da rede de seguridade social do governo fazendo exatamente o que deveria fazer: ajudar um número maior de pessoas em um momento de dificuldade econômica generalizada.

O recente crescimento do SNAP é, de fato, incomum, assim como são incomuns os tempos em que estamos vivendo – e incomuns da pior forma possível. A Grande Recessão de 2007-2009 constituiu a pior crise desde a Grande Depressão, e a recuperação que se seguiu a ela foi muito fraca. Vários estudos econômicos cuidadosos têm mostrado que a crise econômica explica grande parte do aumento na utilização dos vales-alimentação. E, apesar de o noticiário econômico estar se mostrando ruim de maneira geral, uma boa notícia é que os vales-alimentação têm, pelo menos, ajudado a atenuar as dificuldades dos cidadãos, mantendo milhões de norte-americanos fora da pobreza.

E esse não é o único benefício do programa. Hoje dispomos de evidências mais do que suficientes para comprovar que os cortes de gastos, quando adotados em economias deprimidas, aprofundam ainda mais a recessão – apesar disso, os gastos do governo estão caindo de modo geral. O SNAP, no entanto, é um programa que vem se expandindo e, como tal, tem ajudado indiretamente a salvar centenas de milhares de empregos.

Mas, dizem os suspeitos do costume, a recessão terminou em 2009. E por que é que a recuperação não fez com que o número de inscritos no SNAP diminuísse? A resposta é que, apesar de a recessão ter de fato acabado oficialmente em 2009, o que tivemos desde então é uma recuperação de e para um pequeno número de pessoas situadas no topo da pirâmide de distribuição de renda, e nenhum desses ganhos gotejou em direção aos menos afortunados. Corrigida pela inflação, a renda do 1% mais rico da população dos EUA cresceu 31% entre 2009 e 2012, enquanto que a renda real dos 40% mais pobres recuou 6% no mesmo período. Dessa forma, por que é que o uso dos vale-alimentação deveria recuar?

Mesmo assim, será que o SNAP é, em geral, uma boa ideia? Ou será que o programa é, de acordo com a descrição de Paul Ryan, presidente da Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, um exemplo de transformação da rede de seguridade social do governo em “uma confortável rede de dormir, que serve para embalar pessoas aptas ao trabalho, fazendo-as embarcar em uma vida de dependência e complacência”?

Ao que eu pergunto: que tipo de rede de dormir é essa? Para se ter uma ideia, no ano passado, os beneficiários do vale-alimentação recebiam, em média, US$ 4,45 por dia. Além disso, se ficarmos apenas com as “pessoas aptas ao trabalho” mencionadas por Ryan, veremos que quase dois terços dos beneficiários do SNAP são crianças, idosos ou pessoas com deficiência, e a maior parte do restante são adultos com filhos.

Para além desses fatos, no entanto, você pode pensar que garantir uma alimentação adequada para as crianças, que é em grande parte o que faz o SNAP, na verdade, tornará menos provável, e não mais, que essas crianças venham a ser pobres e precisem de assistência pública social quando crescerem. E isso é o que as evidências mostram. As economistas Hilary Hoynes e Diane Whitmore Schanzenbach estudaram o impacto do programa de distribuição de cupons de alimentação nos anos 1960 e 1970, quando ele foi gradualmente implementado em todo o país. Hilary e Diane acreditam que, em média, as crianças que receberam esse tipo de assistência precocemente cresceram e se transformaram em adultos mais saudáveis e mais produtivos do que aquelas que não receberam o benefício – e elas também eram ao que parece menos propensas a recorrer à rede de seguridade social para obter ajuda.

Em suma: o SNAP é uma política pública em seu melhor. O programa não só ajuda os mais necessitados: ele também os ajuda a se ajudarem. E o SNAP tem feito ainda um corajoso trabalho durante a crise econômica, ao mitigar o sofrimento e proteger os empregos num momento em um número grande demais de políticos parecem determinados a fazer justamente o oposto. Por isso, não é à toa que os conservadores tenham escolhido este dentre todos os programas como o alvo especial de sua ira.

E até mesmo alguns analistas conservadores temem que a guerra contra os vales-alimentação – especialmente quando combinada à aprovação na Câmara do aumento para os subsídios agrícolas – seja ruim para o Partido Republicano, pois ela faz com que os conservadores pareçam defensores malvados da luta de classes. Na verdade essa guerra faz mesmo eles serem vistos dessa maneira. Mas isso é porque eles realmente são defensores malvados da luta de classes.

*Referência ao discurso “As quatro liberdades”, proferido em janeiro de 1941 pelo ex-presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt.

Juremir Machado

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