sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O Direito Constitucional à saúde tem futuro?


Ana Maria Costa


A frágil governabilidade permitiu que o capital e o mercado se transformassem na força de comando da saúde no País.

As sucessivas crises do capitalismo internacional vêm destruindo os direitos sociais em todos os países do planeta, incluindo os europeus, nos quais estas conquistas já estavam consolidadas.Como causa e consequência destas crises, acirram-se perversos processos de concentração do capital e de produção de riquezas, gerando cada vez mais desigualdades – entre e no interior – dos países.

O fato é que a cada dia o capitalismo aperfeiçoa suas estratégias de sobrevivência expandindo alianças e domínios de acordo aos seus interesses. No caso da América Latina, os grupos políticos identificados e comprometidos com direitos e justiça social apenas conseguem se eleger mediante celebração de alianças com partidos conservadores e articulados com o capital, e os governos são submetidos a pressões de barramento dos avanços das políticas sociais.O Brasil conseguiu, nos últimos anos, implementar políticas redistributivas com ampliação da capacidade de consumo da população. Mas, a despeito da importância desse feito, nada significa para avançar na conquistas dos direitos sociais.

É básico entender o conflito entre uma sociedade conduzida pelo e para o mercado e o consumo individual com aquela pautada por interesses coletivos tomados como objeto de políticas sociais para promover direitos universais.

Estas complexas contradições – mercado, consumo e direitos sociais – estão abrigadas na polissemia das narrativas das ruas e cidades rebeldes. A estranhada ausência de formulações apuradas como nos tempos pretéritos das palavras de ordem que sintetizavam as aspirações populares por mudanças não pode desqualificar a importância da semeadura de uma saudável e confusa inquietação contra a ordem das coisas.

Ao futuro saber onde tudo isso vai dar.

Em relação aos direitos sociais e à saúde, apostando que as aspirações populares possam conduzir a um projeto cujo centro seja o valor da vida das pessoas, com direitos e cidadania social, é prudente apurar os ouvidos para compreender sobre a saúde que compareceu nas ruas durante as manifestações de junho.

A repercutida faixa “Saúde padrão Fifa”, no imaginário popular, está associada à “boa medicina” do consumismo tecnológico e procedimental que hoje impera na assistência médica. Nesse sentido, se aproxima ao fetichismo do consumo da saúde como mercadoria, cujo valor positivo alimenta o desejo popular ao acesso.

Já a bem humorada frase “Bota 20 centavos no SUS” explicita a necessidade de mais recursos para o sistema de saúde nacional. Mas entre as duas ideias, há um fosso de múltiplas leituras acerca das vozes das ruas.

Nesse hiato de possibilidades, é plausível acreditar que a luta pelo direito universal à saúde tenha recomeçado e, nessa perspectiva, a reforma sanitária ensaiada possa constituir nova hegemonia e voltar à cena contemporânea.

A reforma sanitária que foi gestada nos anos oitenta encontra-se sintetizada no artigo 196 da Constituição Federal, que preconiza um modelo de estado no qual o direito a saúde integre o desenvolvimento nacional que, por sua vez, deve ser realizado pela articulação intersetorial das políticas econômicas e sociais destinadas à produção de qualidade de vida, redução das desigualdades, promoção dos direitos sociais e, por todos estes caminhos, lograr melhorias na saúde do povo.

Ao lado disso, e de forma complementar, é concebido um sistema de atenção e de cuidado à saúde, o SUS, que por sua vez não pode e nem deve reproduzir o modelo hegemônico de assistência médica, pela comprovada ineficiência deste para resolver os problemas de saúde da população.

O outro modelo voltado para produzir a saúde é critico à medicalização e promove a saúde e a racionalização do uso da tecnologia, sem deixar de assistir as pessoas quando doentes e necessitadas de cuidados especializados.

Da Constituição até o presente, a saúde pública, universal e de qualidade não constou da pauta dos sucessivos governos: nem as múltiplas políticas sociais articuladas e integradas que promovem direitos e qualidade de vida e nem o sistema de assistência e cuidado à saúde, o SUS. Ao contrário, foi o mercado privado que cresceu e enraizou seus interesses no interior do Estado, favorecido pela renuncia e pelos subsídios fiscais.

É tempo de retomar o percurso começando por compreender a saúde como bem comum, portanto, uma questão para a democracia. Tempo de defender o avançado conceito adotado pela nossa Constituição, entendendo que saúde é incompatível com o mercado, não é sinônimo de consumo de procedimentos e é um bem público sem o qual nenhum projeto de desenvolvimento se sustenta.

A Constituição que criou o sistema único está referida a um tipo de governabilidade pública, o que não tem sido praticado. Da condição legal de sistema complementar, a frágil governabilidade permitiu que o capital e o mercado se transformassem na força de comando da saúde no país.

O que é esperado do Estado – dos governos e da sociedade – são mudanças de rumo para tratar a saúde de forma distinta aos interesses do capital, para que as pessoas vivam a vida com saúde, dignidade e qualidade. Para isso, é preciso garantir financiamento sustentável ao SUS, regular efetivamente o setor privado sob a lógica dos interesses públicos, revertendo o favorecimento ao mercado setorial, acabando com a renúncia fiscal e os subsídios que hoje são oferecidos. Retomar, afinal, o que afirma a Constituição: a saúde é direito universal e dever do Estado.

* Ana Maria Costa é médica, doutora em Ciências da Saúde, docente da ESCS-DF e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

Carta Capital

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