terça-feira, 5 de junho de 2012
John Reed, cronista da revolução inacabada
Na obra de um jornalista norte-americano, reportagem e paixão pelos rebeldes russos que se julgaram capazes de mudar o mundo
Por Arlindenor Pedro
O século XX foi o da tentativa de materialização das grandes utopias modernas, confrontando opiniões e levando a duas grandes guerras de caráter mundial.
Já em 1917, a revolução bolchevique passou a embalar o sonho da maioria dos marxistas, que tiveram a chance de acompanhar a implantação da primeira experiência mais sólida de um estado socialista – pelo menos, de acordo com os conceitos leninistas. Também, a Itália viveu a sua utopia, a de um estado fascista, que influenciaria a experiência nazista de Hitler e falanges em todo o mundo.
Na América do Norte, a burguesia liberal aprofundou a sociedade de mercado, levando-a a um plano inimaginável, com novos produtos, novas organizações para o trabalho (divulgado por Hollywood, o modo de vida americano passou a ser invejado por muitos). Na China chocaram-se, numa grande guerra civil, as forças e ideias de Mao Zedong e do Kuumitang. Mesmo os japoneses não ficaram imunes a esse movimento global, e tentaram aprofundar seu grande sonho: o de um grande Japão, estendendo-se por toda a Ásia.
No intervalo das duas grandes guerras, viveu-se um período de grandes efervescências que se materializou numa arte revolucionaria e em militantes inquietos e sonhadores. Revoluções explodiam em todo planeta. No Brasil, as ideias tenentistas e da Semana de 22 asfaltavam as estradas que levariam à revolução de 30.
John Reed foi um desses revolucionários que procurou viver plenamente o clima do século XX; daqueles que tinha como projeto de vida a realização de suas utopias. Trata-se de um tipo de personagem heroico, que poderíamos encontrar nos romances de Érico Verissimo (como o personagem Vasco, por exemplo), que são capazes de abandonar tudo e participar de uma guerra civil em um país distante, (como a Espanha…), para defender seus ideais.
Americano de Portland, filho de uma família de posses, Reed formou-se em Harvard, um centro do pensamento conservador norte-americano. Mas, para loucura de seus mestres, não seguiu o caminho tradicional dos filhos da burguesia. Viveu a sua curta e intensa vida no bairro boêmio de Village, em New York, nas primeiras décadas do século XX, rodeado de intelectuais, artistas e revolucionários, destacando-se como um dos mais brilhantes jornalistas do inicio daquele século. E como um intelectual que colocou como objetivo de vida engajar-se nos movimentos sociais, dando voz aos oprimidos pelo capital.
Amigo de Emma Goldman, importante ativista anarquista daqueles tempos, e de líderes sindicais do movimento socialista, sempre postou-se ao lado dos mais fracos, colocando seu talento literário a serviço das causas operárias, fazendo a cobertura jornalística das greves e confrontos contra os patrões.
Jornalista por escolha, e defensor de ideias libertárias, viu na revolução mexicana de 1912 um grande acontecimento popular. Reportou-a com o risco da própria vida, chegando, inclusive, a fazer uma histórica entrevista com Pancho Villa, um dos líderes da revolução camponesa, de quem se tornou amigo.
Por suas ideias e atitudes contestatórias, Reed foi perseguido e discriminado na grande imprensa norte-americana. Por isso mesmo, tornou-se de grande valor Reds – filme que, produzido em Hollywood, tenta retratar alguns momentos de sua vida.
Talvez, pelo caráter romântico e aventureiro que esta adquiriu e pelo grande romance que o jornalista viveu com feminista Louise Bryant, sua companheira até a morte, essa produção centra-se mais no romance das suas vidas em comum, colocando em segundo plano uma extensa e intensa obra de militante de esquerda, no país mais importante do capitalismo.
A produção é dirigida por Warren Beatty, que faz também o papel de Jonh Reed. Tem a participação de Diane Hall (também Diane Keaton), no papel de Louise Bryant; Jack Nicholson interpreta Eugene O’Neill e Edward Herrmann representa Max Eastman Traz à tona, com intenso realismo, os primórdios da modernização capitalista. Mostrando uma face das utopias do movimento operário que se perdeu na sociedade de consumo contemporânea. Vale a pena refletir sobre ela, além do filme em questão.
John Reed escreveu, entre outros livros um dos mais empolgantes trabalhos sobre a revolução soviética: Os dez dias que abalaram o mundo. É uma obra-prima; descreve com um intenso realismo o evento social mais espetacular do século XX – a grande revolução capitaneada pelos bolcheviques e pelo seu líder, Lênin.
Antes de dedicar-se à Rússia, o autor acompanhava a I Guerra Mundial na Europa, fazendo artigos para a imprensa americana. Ao saber da deposição do czar Nicolau, decidiu cobrir aquele confuso movimento político. Anteviu a grande importância histórica que ele representava.
A revolução bolchevique teria um espectador estrangeiro à sua altura: Reed não se contentou em fazer uma cobertura superficial. Tomando um lado da história, foi capaz de traduzir aqueles intrincados acontecimentos, que teriam importância sem precedentes na história moderna da humanidade.
Em certa parte do livro, o autor, ao se referir aos eventos revolucionários que assistiu, fala com propriedade: “há dias que valem por cem anos”. Significa que a história não se movimenta de maneira contínua e linear. Em certos momentos, algumas atitudes podem alterar o curso dos acontecimentos e nos projetar para um futuro antes impossível.
De um momento para o outro, forças sociais poderosas tinham se posto em movimento na velha Rússia czarista. Chocaram-se com uma realidade até então considerada imutável, colocando abaixo o velho regime e trazendo à tona os personagens mais excluídos – considerados como escória, corja social.
Traziam a utopia de uma nova forma de viver e de se relacionar, sem a interferência do capital e da exploração do homem pelo homem. Reed percebeu que, naquela hora, Lênin e seus companheiros bolcheviques, eram a força política que mais se identificava com esses anseios.
Em certo momento, quando assistia a um evento histórico – o II Congresso Pan-russo dos Sovietes dos Deputados Operários e Soldados, às vésperas da invasão do Palácio de Inverno, e início da deposição do governo de Kerensky, Reed atenta para a exclamação feita por uma das recepcionistas da reunião, revelando que em poucos meses mudara a correlação das forças políticas na Rússia e os bolcheviques, antes minoria, passavam a comandar o processo revolucionário:
“A moça encarregada do serviço, membro do grupo de Plekhânov, sorria desdenhosamente.
– Não se parecem nada com os delegados do primeiro congresso [ela se referia ao Congresso de meses antes, em que os mencheviques e cadetes tinham a maioria] – disse-me ela: — Vejam que fisionomias abrutalhadas e que expressões de ignorância! Que gente inculta!
E não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as entranhas. Os que se achavam nas maiores profundidades é que estavam vindo à superfície”.
A acuidade política de Reed, adquirida nas lutas operárias de que participou nos Estados Unidos, permitiu-lhe perceber para onde se inclinava a maré revolucionária e entender a postura intransigente e determinada dos bolcheviques, que, confiando nos desejos da classe trabalhadora, foram capazes de derrubar o governo provisório de Kerensky e avançar, sem perder o rumo, para uma nova etapa da revolução russa: a implantação de um governo soviético, dirigido pelo partido que tinha Lênin como líder.
Assim se refere Reed às características desse líder singular, quando o viu chegar ao Congresso dos Sovietes:
“Uma silhueta baixa. Cabeça redonda e calva, mergulhada entre os ombros. Olhos pequenos, nariz rombudo, boca larga e generosa. Mandíbula pesada. Estava completamente barbeado. Mas a sua barba, dantes tão conhecida e que daquele momento em diante iria ser eterna, já começava a despontar novamente. O casaco estava puído; as calças eram compridas demais. Sua aparência física não indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões. Mas foi querido e venerado como poucos chefes em toda a história. Um estranho chefe popular. Chefe só pelo poder do espírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em destaque, sem a menor particularidade interessante, mas possuindo, em alto grau, a capacidade de explicar ideias profundas em termos simples e de analisar concretamente as situações. Senhor de prodigiosa audácia intelectual, assim era Lênin.”
Lênin caracteriza-se, sem dúvidas, por genialidade na compreensão da sociedade russa e das características do mundo em que viveu. Foi capaz de traçar uma estratégia admirável para a tomada do poder politico.
Seus livros foram todos escritos no fragor da luta política. Cada um deles insere-se numa realidade peculiar da conjuntura da Rússia pré-revolucionária e revolucionária. Não são devaneios intelectuais, pois estão presos, no geral, ao desejo de uma prática imediata. Sua obstinação e rigidez teórica o fizeram transformar um pequeno partido, nascido da cisão da social -democracia russa, na vanguarda revolucionária de um evento que movimentou milhões de pessoas.
Reed teve a sorte de estar ali, naquele momento, podendo conviver com uma figura tão importante. Pode, também, ouvir os discursos dos líderes dos diversos partidos, que fizeram parte daqueles dias decisivos. Entrevistou pessoas das mais diversas correntes, tanto da esquerda como da direita. Sentiu a profundidade da esperança que moveu milhões de pessoas na busca da construção de um outro tipo de sociedade, sem a exploração do homem pelo homem. E cumpriu um papel: seu livro, fruto da sua participação naqueles eventos, tornou-se no maior documento sobre a revolução russa.
Seu valor literário é indiscutível. Lênin e sua esposa Krupskaia fizeram questão de prefaciar sua primeira edição em solo russo. Também, em nome do Partido Comunista, em 1957, escreveu-se um posfácio a uma edição russa. Seu propósito claro é afirmar conceitos sobre a luta que se sucedeu após a morte de Lênin – quando Stálin expurgou líderes bolcheviques que Reed cita no seu livro, tais como Trostsky, Zinoviev e Kamenev.
Após retornar à Rússia, depois de passar um período nos Estados Unidos, Reed faleceu, recebendo honras de estado, como herói do povo soviético. Foi enterrado na Praça Vermelha, ao lado do túmulo de Lênin. Uma justa homenagem pelo amor que tinha pela revolução russa.
Hoje, a utopia de Jonh Reed, o estado soviético, não existe mais. Foi vencida pela utopia da sociedade do livre mercado: aquilo que Guy Debod chamou de “Espetáculo Integrado”.
Os bolcheviques não conseguiram construir a sociedade almejada pela utopia socialista. Golpeados pelo fetiche da mercadoria, transformaram-se em administradores de um capitalismo de estado. Foram incapazes de perceber que os sujeitos sociais construídos pelo desenvolvimento capitalista (a “classe burguesa” ou a “classe proletária”) não podem ser agentes da emancipação, pois não deixam de ser sujeitos capitalistas.
Não procuraram avançar para além da sociedade da mercadoria, de superar o trabalho abstrato e o valor, de abolir a cruel intermediação que impede o homem de atingir a sua plenitude como ser integrado ao universo. Entraram, então, numa competição vazia com seus concorrentes ocidentais, cujo objetivo era estabelecer que modelo social poderia fazer o melhor bem de consumo, as melhores armas de destruição em massa, agredindo de forma sem precedentes o meio ambiente.
Através de um estado capturado pela burocracia, comandaram, com a estrutura da III Internacional, um processo de lutas operárias em todo o mundo, que só serviu para avalizar o capitalismo, dando-lhe uma face social, adquirida nas negociações com os sindicatos. Num mundo com diversos matizes de capitalismos socializantes, a classe operária vai, então, ao paraíso, onde os seres humanos são meros consumidores, transformando-se em reféns das crises cíclicas do sistema.
A atitude inquieta e revolucionária de Jonh Reed expressa o sentido de liberdade inerente a todos os seres humanos. Ele não morreu com o desenvolvimento do estado soviético. Esteve e estará presente no espirito das barricadas da revolução de outubro, como na Comuna de Paris, ou em tantos eventos em que o povo foi às ruas lutar por suas utopias.
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