Uma conversa com o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos em que ele fala sobre as manifestações ao redor do mundo, a força dos partidos, a reforma política no Brasil e o papel da imprensa.
Por Miguel do Rosário
“O que define uma cidade é a história de seus crimes”, diz o narrador do último romance de Alberto Mussa.
Eu poderia parafraseá-lo e afirmar que uma cidade se define também pela história de seus engarrafamentos. Cito Mussa, um carioca nascido em 1961, porque é um dos autores preferidos de Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político e escritor, e menciono o engarrafamento porque fui vítima de um dos mais terríveis enquanto me dirigia ao restaurante Amir, na praça do Lido, em Copacabana, para jantar com Wanderley. Ele já lá se encontrava, juntamente com seu filho, meu amigo e artista plástico Juliano Guilherme, e recebeu-me calorosamente, pois nos conhecemos há alguns anos e tenho a honra de tê-lo como leitor diário do Óleo do Diabo, meu blogue. Perdoou-nos (a mim e a minha esposa) pelo atraso e lembrou-nos que um engarrafamento tão estúpido possivelmente explicava-se pela realização dos Jogos Mundiais Militares, visto que a maioria das delegações, jornalistas e autoridades hospeda-se em hotéis de Copacabana.
Após alguns kaftas e cervejas Petro, pergunto a Wanderley se acha que as grandes manifestações populares que ocorreram na Espanha, organizadas espontaneamente e por fora dos esquemas partidários, significavam uma tendência mundial de perda de prestígio dos partidos políticos. Santos observou que o prestígio das instituições políticas tradicionais oscila para cima e para baixo, naturalmente. Faz parte do processo democrático. É interessante notar, porém, que as grandes manifestações não-partidárias costumam ocorrer simultaneamente à retomada do interesse da população pela política. Ele lembrou que, nos anos 1950, os EUA registraram altas taxas de abstenção eleitoral. Os americanos não queriam votar, e tampouco se manifestavam nas ruas. Na década seguinte, a situação se inverteria: registraram-se recordes de participação eleitoral ao mesmo tempo em que o país vivia uma febre de grandes manifestações de rua. A mesma coisa se deu na França, antes e depois da famosa primavera de 68. E assim em toda parte. Inclusive na Espanha recentemente. Ao contrário do que se ventilou por aí, de que foi grande a abstenção eleitoral no país, o que comprovaria o declínio dos partidos políticos na Espanha e no mundo, o percentual de eleitores cresceu de 63,9% em 2007 para 66,2% em 2011, e a abstenção caiu de 36% para 33,7%.
Quando os partidos surgiram, explicou Wanderley, eles detinham o monopólio da representação e da participação políticas. Era proibido se manifestar fora do âmbito partidário. Com o avanço da industrialização e o nascimento de sociedades mais complexas, fragmentadas em diversos grupos de interesses, muitas vezes divergindo entre si, e ao mesmo tempo com a institucionalização e burocratização crescente da vida legislativa, os partidos políticos passam a não mais dar conta da dinâmica social.
A temporalidade da vida partidária e legislativa, com seus ritos processuais, seus trâmites jurídicos, se distancia da temporalidade das demandas sociais mais urgentes. “Há demandas que pedem o povo na rua”, observa Santos, “e não diante da Câmara dos Vereadores, mas em frente ao palácio do prefeito”. Os partidos mantêm o monopólio da representação, mas abandonam a participação política, cuja função migra para outras instâncias sociais, como sindicatos, ONGs, movimentos sociais tradicionais ou mesmo não-tradicionais, como é o caso das manifestações realizadas na Espanha.
Entretanto, as duas formas de expressão democrática não são antagônicas, mas complementares. As manifestações de rua não visam à destruição das instituições políticas, mas influenciá-las, pressioná-las para o atendimento de demandas específicas. Não se pode confundir, porém, os protestos por liberdade política num regime ditatorial, como foram os que se deram no Egito, com manifestações por mudanças democráticas, num país como a Espanha.
Uma postura quase subversiva em relação às instituições políticas tradicionais, ironicamente, recebe um estímulo da própria velha imprensa. “A imprensa passou a fazer oposição às instituições políticas após a universalização do voto”, assevera Wanderley. Antes da universalização, a imprensa (ou as forças sociais que ela representa) exercia uma influência muito maior sobre a política partidária.
Pergunto a Wanderley sobre as origens e razões do conservadorismo de São Paulo, principal bastião da direita brasileira. “Ser paulista sempre significou ser conservador”, diz Wanderley, lembrando que o estado sempre fez oposição ao governo central. “O auge disso foi com a chamada revolução de 32, até hoje festejada no estado”, lembra o cientista. As razões residem no próprio desenvolvimento do moderno capitalismo brasileiro, ancorado fortemente em São Paulo, com o estabelecimento de uma imprensa forte no estado. Até hoje, é o único estado onde há uma razoável imprensa regional, quase toda sob controle político de partidos conservadores. “É o dinheiro. O Rio, quando era capital e tinha mais recursos, tinha 18 jornais. Alguns jornais faziam duas edições por dia”, lembra-se Wanderley, algo nostálgico. “Hoje temos só um”, lamenta-se, referindo-se naturalmente a O Globo, único jornal de opinião que restou na cidade. Entretanto, o cientista prevê mais um avanço eleitoral da esquerda em 2012, com o crescimento de partidos como PT, PSB e PcdoB, nacionalmente, mas também em São Paulo.
Falamos também um pouco sobre reforma política, um assunto que Wanderley acompanha de perto. Uma das mudanças aprovadas na comissão do Congresso que analisa a reforma prevê reunir todas as eleições, federal, estaduais e municipais, num só pleito. Wanderley é contra essa mudança, porque as eleições municipais constituem um termômetro importante para avaliarmos o desempenho do governo central. Os EUA e quase todos os países europeus têm eleições a cada dois anos. Juntá-las, portanto, seria reduzir a democracia, pois tiraria da sociedade o poder de enviar um recado ao grupo dirigente na metade de seu mandato.
Escritor laureado com inúmeros prêmios, nacionais e internacionais, Santos enfrenta, desde alguns meses, o desafio de dirigir a Fundação Rui Barbosa. Enquanto saboreava um quibe cru, confessou suas angústias em enfrentar, pela primeira vez na vida, a pachorra burocrática, agravada pela falta de novos concursos para admissão de funcionários e pela contenção orçamentária decretada pelo governo federal. Seu maior prazer continua mesmo a literatura de ficção, sendo um leitor voraz de escritores contemporâneos, nacionais e estrangeiros. Quando estive em seu apartamento em Ipanema, não pude deixar de notar os Philip Roth, Paul Auster e Lobo Antunes jogados sobre cadeiras e sofás. Aliás, nem se trata apenas de prazer, pois Santos publicou um romance pela Rocco em 2007, Acervo de Maldizer. A incursão de Santos na literatura, no entanto, não é uma surpresa, pois seus livros de ensaios sobre democracia e ciência política sempre se caracterizaram por uma abordagem não convencional, criativa, dos assuntos tratados, apesar do mais absoluto rigor científico.
Nascido em 1935, esse intelectual que ganhou notoriedade ao publicar um artigo profético, Quem dará o golpe no Brasil, no volume cinco da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, em que denunciava, sem apelar para nenhuma teoria conspiratória, a gestação de um golpe de Estado pelas elites conservadoras, também foi o primeiro a alertar, em junho de 2005, sobre um “golpe branco” contra o presidente Lula, articulado pelas mesmas instâncias que planejaram o golpe de 1964: a direita e a imprensa.
Feliz com as vitórias democráticas das forças de esquerda, no Brasil e na América Latina, esse veterano da ciência política levanta-se da mesa para melhor observar as odaliscas dançando no meio do restaurante árabe em que estávamos, e que lembravam-no, conforme me contou no dia seguinte, as odaliscas do carnaval de antigamente, daquele belo Rio de Janeiro pré-ditadura, de baixos índices de violência urbana e elevadas taxas de romantismo. Talvez o que defina as cidades, então, para voltar ao romance de Mussa, não seja nem a história de seus crimes nem de seus engarrafamentos, mas de suas odaliscas, reais ou imaginárias. Wanderley, carioca inveterado e aficionado pela escrita, tenha talvez sentido afinidade com a fala final de um dos personagens do Senhor do lado esquerdo: “só me resta, assim, agradecer à cidade, e a seu deus, que me permitiram viver e, principalmente, imaginar – que é a forma mais perigosa de experimentar a vida”.
Wanderley Guilherme dos Santos
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