Bruno Lorenzatto
Em “Violência”, filósofo tenta dissecar dispositivos que, em nome da “paz”, levam sociedades à pior brutalidade — que consiste em considerar “normal” o inaceitável
Irredutível crítico do capitalismo, a trajetória intelectual do filósofo esloveno Slavoj Zizek é marcada pelo esforço contínuo de problematizar os discursos e práticas que sustentam o poder vertiginoso do mercado sobre o mundo contemporâneo.
O pensador – herdeiro de uma linhagem filosófica crítica, que tem como referências Hegel, Marx e Lacan – está menos interessado em responder às questões postas em nossa época do que reformulá-las, uma vez que “não existem apenas soluções certas e erradas para problemas, mas também problemas certos e errados”, afirma Zizek, parafraseando Deleuze.
Em Violência, livro publicado ano passado no Brasil pela Boitempo Editorial – composto por seis ensaios sobre o tema, o filósofo repensa o conceito que dá título à obra através de uma análise de discursos políticos, sociais e econômicos. Sobretudo, os discursos de abordagem liberal, que camuflam os diversos modos de violência perpetrados pelos poderes instituídos – leia-se os poderes atrelados ao capital.Assim como é preciso – segundo Freud – conhecer o inconsciente para ter acesso às regras de funcionamento da consciência; se quisermos saber como opera a legitimação do capitalismo, a ideologia – para Zizek – é o nível que devemos investigar para atingir a camada inconsciente dos discursos que corroboram o capitalismo no âmbito das subjetividades, mesmo que por vezes tais discursos pretendam eliminar os efeitos abomináveis do modelo liberal. Ideias como capitalismo justo ou filantropia são essencialmente ideológicos nesse sentido.Zizek não é um pacifista. Pelo contrário, ele acredita que aquilo que chamamos de paz é um dispositivo frequentemente utilizado para esconder o exercício sistemático da violência – aquela que não produz impacto na sensibilidade humanitária das sociedades modernas. Desmistificando a oposição simplista (paz x violência), ele chama atenção para a violência – não problematizada – que é efeito direto do capitalismo.
A base de toda sua argumentação consiste na distinção conceitual entre violência subjetiva e objetiva. A primeira é a que estampa de vermelho as páginas dos jornais – facilmente condenável –, os atos violentos individuais ou coletivos. A segunda é “sutil”, anônima e engendrada pelo próprio sistema das relações vigentes, ou seja, as crises econômicas, a exploração constante, a violência simbólica de classes etc: “a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pano de fundo de um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas ‘normal’ e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente aquela inerente a esse estado ‘normal’ de coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como subjetivamente violento.”
Para o filósofo, é por causa da ideologia subjacente ao discurso liberal que a violência intrínseca ao sistema capitalista pode ser ocultada e percebida como paz – sendo a própria ideologia um modo de violência: tendo a metafísica do mercado global como lei inquestionável, uma crise que arruína milhares ou milhões de vidas deve ser percebida como não violência, como um mal necessário a ser suportado.
Os belos discursos e atos de caridade e filantropia, sob essa perspectiva, revelam-se uma armadilha ideológica, são “a máscara humanitária que dissimula o rosto da exploração econômica (…) o capitalismo atual não pode se reproduzir por conta própria. A caridade extraeconômica se faz necessária a fim de manter o seu ciclo de reprodução social.”
A questão dos refugiados também é borrada pela ideologia. Embora colocada em termos de aceitação ou proibição da entrada dos imigrantes na Europa, um problema mais importante parece passar despercebido, isto é, precisamente a causa da imigração: o capitalismo global imposto pelo Ocidente*.
Seguindo a lógica da questão de Brecht – “o que é um assalto a banco comparado com a fundação de um banco?” isto é, “o que são os assaltos que violam a lei comparados com os assaltos que têm lugar no quadro da lei?” – Zizek pergunta: “o que é um ato de terrorismo face a um poder de Estado que faz a sua guerra contra o terrorismo?”
Impossível não pensar na criminalização racista da pobreza efetuada pela polícia do Rio de Janeiro (não só lá, aliás) para a manutenção da “paz”. O que é um assalto ou um arrastão face ao programa de extermínio da população negra e pobre das favelas? No entanto, a força da ideologia não cessa de apagar esse contraste. Assim, devemos operar uma significativa inversão: o “problema errado” é pedir paz; questionar a violência imposta pelo capital significa abordar o “problema certo”.
Com esse deslocamento do olhar, a violência cotidiana que mantém o sistema funcionando passa a ser intolerável. Enquanto a violência que pode mudar os paradigmas econômicos e sociais, segundo Zizek, a “violência divina” (ou revolucionária), a violência dos oprimidos é a única possível de ser aceita.
Resenha de:Violência, de Slavoj Zizek
Editora Boitempo, São Paulo, 2014
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