"É a banalidade do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o fundamento de um sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta, repleto de ações isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves violações de direitos humanos em solo brasileiro", alerta Haroldo Caetano da Silva, promotor de Justiça, mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, em artigo publicado no blog Justificando, 20-07-2015.
Eis o artigo.
Hannah Arendt descreve Adolf Eichmann, oficial alemão responsável pela logística do transporte de judeus para campos de concentração, como um homem que não admitia qualquer culpa no extermínio massivo de pessoas durante o Terceiro Reich. No seu julgamento, reportado pela filósofa alemã de origem judaica no livro Eichmann em Jerusalém (Companhia das Letras, 1999), Eichmann enfatizava que não passava de um mero cumpridor de ordens e, como tal, jamais poderia ser punido por se desincumbir com eficiência das funções a ele acometidas pelo regime nazista. Sua tarefa limitava-se, insistia ele em seus muitos depoimentos, a organizar a identificação de pessoas, encontrar e providenciar rotas de trens; e que não tinha responsabilidade sobre o destino dos milhares de judeus transportados para os campos de extermínio.
Dizendo-se funcionário público exemplar, Eichmann cumpria à risca as ordens superiores, cuja legalidade estava assegurada pelo ordenamento jurídico do regime nazista. Não havia ilegalidade em sua conduta, defendia-se; pelo contrário, agia exatamente como determinava a lei. Assim se manifestava o que Hanna Arendt depois conceituou como a “banalidade do mal”.
Neste breve texto, proponho um exercício intelectual no sentido de traçar um paralelo entre aquela prática nazista, cuja legalidade era atestada por importantes juristas da época, e o contexto atual do sistema penal brasileiro.
Para onde são levados aqueles que são apontados pela polícia como autores de crimes ou aqueles que são condenados pela justiça criminal brasileira?
Respondo: para presídios como esses das fotos ao longo do texto. Com uma ou outra diferença, a regra geral é a inclusão de homens e mulheres em espaços que em boa parte se assemelham a campos de concentração. Superlotados, fétidos e sombrios ou mesmo em ruínas, os presídios brasileiros são palco de abandono, doença, tortura e morte. Há poucas exceções que por isso mesmo são irrelevantes quando se observa o sistema prisional como um todo. A violação da dignidade de seres humanos é rotineira, o que expõe a prisão à máxima ilegalidade, pois contraria aquele que é um dos fundamentos do nosso país enquanto Estado Democrático e de Direito.
A esta altura você, leitor, já pode imaginar aonde pretendo chegar com este texto. Sim, os juízes e tribunais que fazem a jurisdição criminal no Brasil encaminham homens e mulheres para esses lugares aí das fotografias ou, se não esses, outros muito parecidos. Se você tem estômago forte, veja o documentário “O grito das prisões” (2008), produzido pela repórter Fátima Souza e pelo cinegrafista Ocimar Costa por ocasião da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Carcerário, disponível aqui.
Como você irá perceber, o documentário retrata muito bem a prisão, escancarando um pouco dos absurdos que acontecem nesse espaço de que tanto se fala. É basicamente assim que funciona a prisão no Brasil deste início de Século XXI, onde já estão cerca de 600 mil mulheres e homens.
Que a sociedade deva segregar alguns dos seus em função da prática de crimes é algo que não se discute, particularmente no presente momento da história. A abolição do cárcere é uma utopia, bela e até necessária, porém, ainda muito distante. Casos há que exigem, sim, o encarceramento como resposta. Este artigo não questiona esse fato, mas em como se dá a prisão de pessoas e como atua o sistema de justiça criminal em face dessa realidade.
Então vem uma segunda pergunta: diante do quadro de horror dos presídios brasileiros, como é que juízes continuam a encaminhar homens e mulheres para esses espaços que violam os mais comezinhos direitos fundamentais?
Também respondo: tal qual Adolf Eichmann, convicto de que atuava na estrita legalidade do regime político de sua época, os juízes brasileiros assim procedem com a certeza de que, ao encaminhar seus réus para a prisão, apenas cumprem com suas obrigações legais. Se Eichmann afirmava desconhecer o destino dos trens repletos de judeus para eximir-se de qualquer culpa, também os juízes criminais brasileiros, ressalvadas as honrosas exceções, não se interessam por conhecer a realidade das quase-masmorras para onde vão os camburões, tampouco o destino de seus prisioneiros uma vez recepcionados do lado de dentro dos muros. E não se incomodam, até por assim não se perceberem, em atuar como meros executores de uma política voltada ao encarceramento em massa que, seletiva, alcança preferencialmente a parcela jovem, negra e pobre da população. São os nossos judeus.
O mesmo vale – e devo fazer o registro – para outros personagens que participam da persecução penal, com destaque para a polícia e o Ministério Público. Com as respeitáveis exceções de sempre, policiais e promotores de justiça, aliás, assumem abertamente e sem qualquer constrangimento o discurso de que o que vale mesmo é a punição, seja a que custo for. A esses agentes do Estado talvez sequer se apliquem as escusas de Eichmann, pois assim o fazem certos de que a sanção penal não precisa respeitar limites e que a violação de direitos dos presos não tem relevância, tampouco significa motivo de preocupação ou culpa, pois seria resposta legítima para a violação a que correspondiam os crimes praticados contra suas vítimas.
Se o inimigo da Alemanha nazista era o povo judeu, aqui os inimigos são identificados no delinquente e no preso. Contra eles toda a força da lei, dentro de um positivismo estúpido. E para que a máquina punitiva atue, tanto naquele regime autoritário quanto neste que se pretende democrático, as engrenagens são lubrificadas com um óleo alienante, o que faz com que os funcionários públicos que conduzem o processo penal não vejam qualquer culpa pelas consequências de seus atos. Afinal, sua atuação cumpre os rituais previstos expressamente na lei e o conjunto da obra, esse resultado de horror e morte no cárcere, não poderia ser a eles imputado.
É a banalidade do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o fundamento de um sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta, repleto de ações isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves violações de direitos humanos em solo brasileiro.
A legalidade formal e, por isso mesmo, superficial, das prisões decretadas por juízes e tribunais dos quatro cantos do país, dissolve-se nos horrores da prisão. Entretanto, tal qual Eichmann, os artífices do sistema de justiça criminal apresentam-se como servidores públicos exemplares, cumpridores da ordem emanada da lei penal e, assim, isentos de qualquer responsabilidade.
Só não é demais lembrar que, mesmo sustentando com muito vigor a legalidade de suas ações enquanto simples cumpridor de ordens, Eichmann foi julgado, condenado e enforcado em Israel.
Ihu Unisinos
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