quarta-feira, 8 de julho de 2015
Disputar o povão: neopentecostalismo como luta de classes
Edemilson Paraná.
Como não tivessem sido suficientes as leituras e releituras do fenômeno do lulismo em nossa história política recente, os últimos meses não nos tem sido leves à respeito: está na mão do “povão”, das maiorias sociais como minorias políticas, o destino político do Brasil. Por mais óbvia e rudimentar que pareça esta afirmação, trata-se de algo que segue negado, implícita ou explicitamente, há décadas pela direita e por largos setores das esquerdas no Brasil. Eis uma das principais razões pela crise em que estamos metidos.
De um lado o elitismo conservador e violento na manutenção das abissais desigualdades econômico-sociais com toda a carga de cinismos e preconceitos que o caracteriza. Nada de novo. De outro, o apego a uma eterna busca pela “consciência de classe” típica-ideal, como numa espera por Godot: vanguardismo, moralismo, autocelebração e descolamento da realidade das maiorias sociais brasileiras. Da esquerda à direita, quando não temos medo dele, simplesmente não temos a menor ideia de quem é o “povão”. Decifra-me ou te devoro. Ralé, precariado, subproletariado, nova classe média, nova classe trabalhadora, classes populares, enquanto nos debatemos em análises e definições, a esfinge se move, age, muda o mundo a nossa volta, nos devora. O fenômeno do neopentecostalismo é especialmente elucidativo nesse particular.
Foi de Brand Arenari, diretor do IPEA que estuda classes sociais e religião no Brasil (aqui para acessar sua tese), em conferência na UnB, que tomei o último sacode à respeito: “boa parte das críticas dirigidas aos evangélicos são recheadas de puro preconceito de classe. Os pentecostais representam, em grande parte, os setores populares ascendentes, que querem seu lugar ao sol, inclusive na política. Não é sobre fundamentalismo, é sobre luta de classes”. Junho foi também sobre eles, e a esse respeito já havia escrito em 2014 (aqui) à época dos “Rolezinhos”, refletindo sobre uma outra parte desse mesmo movimento de placas tectônicas no Brasil. A dimensão de sua força nas últimas eleições também não parece ter sido devidamente considerada.
É que em política, diz-se, não há espaço vazio. Na ausência de uma gramática política inclusiva, democrática e participativa, e de um projeto de país turbinado por um discurso cultural-ideológico forte que falasse diretamente a esses setores, viu-se o novo consumo material e cultural encontrar um correlato moral: a Teologia da Prosperidade. Nós, que sempre consumimos, assistimos sem entender (e, portanto, sem disputar) o fenômeno. “Consumo sem luta por direitos”, “consumo sem valores civilizacionais” tem sido o tom das análises. Eis que a luta por direitos e representação política no parlamento e os valores civilizacionais das massas petencostais (negras e pobres, em sua maioria) emergem com força. A recepção, recheada de boas e velhas intenções “humanistas”, vem em tom de negação radical: “atraso”, “obscurantismo”, “fundamentalismo”. Tudo indica, no entanto, que há muito mais que isso em questão.
O caso do deputado Cabo Daciolo no PSOL é exemplar. Liderança popular dos bombeiros do Rio de Janeiro, de forte retórica religiosa, foi expulso do partido (sobretudo para responder aos clamores de sua militância e eleitorado de classe média). É verdade que passou de todos os limites de contenção político-programática do partido, e é difícil saber se outro desdobramento teria sido possível. Mas quanto da querela não foi contaminada por incompreensão, preconceito de classe e inabilidade para convencer, problematizar e disputar um setor no qual o discurso libertário do partido simplesmente não entra?
A direita tradicional também se assusta, mas nem tanto. Em aliança fisiológica, propõe-se instrumentalmente a dirigir de cima para baixo, como sempre. Cunhas que o digam. Se a Paulista em polvorosa era rica, branca e preconceituosa (aqui pesquisa a respeito), aos poucos sua revolta começa a se encontrar com a das classes populares massacradas pelo ajuste: o fascismo nasce onde morre a revolução, diria Walter Benjamin.
De Mao Tse-Tung e sua Revolução Cultural ao Papa Francisco e sua recente “modernização” da fé, parece claro: ideologia não é algo que paira acima de nossas cabeças, como “falsa-consciência”, como “reificação” apenas. É, antes disso, um modo de representação prático (e infra-consciente) do mundo em que vivemos, baseado fundamentalmente na realidade cotidiana de nossas vidas, inseridas num dado modo de organização da vida social.
É também, por isso, afeto e identificação, porque ancorada em dimensões simbólicas, rituais, práticas e nos sistemas de referência, presença e convivência cotidiana (o pastor toma parte e ajuda a “resolver” os problemas práticos da comunidade, com a comunidade). “A hegemonia política teve por base, em todas as partes, o exercício de uma função social”, observou Engels no Anti-Duhring. Contra sua força avassaladora, a pureza iluminista de distantes discursos lógico-racionais pouco representa. É ciência mas também religião, ou ciência como religião.
Se no início do século XXI faz ruborizar o papo sobre “o fim das grandes narrativas” ou sobre o “fim das identidades”, tão em moda nas últimas décadas do século XX, já passou da hora de disputarmos as classes populares com uma outra ideologia, como um novo discurso de valores e nova prática transformadora (militante, de base, aberta para a organização e construção conjunta com esses setores em todo o seu caldeirão de contradições). Tarde demais? Se continuarmos a agir como agimos até aqui, certamente.
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Edemilson Paraná é pesquisador, mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília.
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Blog da Boitempo
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