"estados de exceção permanente" |
Vladimir Safatle
Na
teoria política tradicional, tendemos a operar com a dicotomia entre sociedades
totalitárias e sociedades democráticas. Se as primeiras são sociedades
incapazes de garantir a realização institucional de exigências de liberdade, as
últimas se realizariam como Estados Democráticos de Direito, ou seja, Estados
dotados de ordenamentos jurídicos que, mesmo imperfeitos, poderiam assegurar
que os conflitos sociais fossem regulados da melhor maneira possível. Suas
imperfeições poderiam, por sua vez, ser paulatinamente sanadas por meio dos
mecanismos institucionais em vigor, respeitando assim o que alguns chamam de
“legalidade democrática”.
No
entanto, vários são os autores a insistir que tal dicotomia não dá conta dos
verdadeiros desafios postos pela reflexão contemporânea sobre o político. Um
dos desafios principais se refere à percepção de que nossas sociedades democráticas não avançam em direção ao
aperfeiçoamento, mas degradam-se lentamente enquanto se mostram incapazes de
superar seus limites. Nesse sentido, nem sequer o termo de “democracias
imperfeitas” é conveniente, já que a ideia de “imperfeição” pressupõe a
existência de um movimento potencial em direção à perfectibilidade, o que está
longe de ser o caso.
Vale a pena lembrar que mesmo países normalmente vendidos como exemplos de democracias
consolidadas, como o Reino Unido, a França, os Estados Unidos e a Espanha,
foram palcos de grandes mobilizações visando expor o profundo descontentamento
social com a democracia parlamentar. Esse descontentamento foi fruto de uma
experiência histórica clara. Nos últimos anos, ficou exposta a maneira pela
qual a democracia parlamentar é profundamente permeável aos interesses
econômicos do sistema financeiro internacional e de seus agentes locais. A
incapacidade de encontrar soluções para colocar um fim ao estado perene de
choque econômico é, no fundo, a compreensão de que não há solução real fora da
reinvenção da vida política.
Aceito
isso, como descrever então a situação na qual se encontra os países dotados do
que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito? Não sendo
simplesmente sociedades totalitárias, tais Estados têm um profundo potencial
autoritário que, em países como o Brasil, explicita-se na maneira “legal” de ignorar
os direitos substantivos dos mais vulneráveis, assim como na criminalização de
todo movimento político que faça ressoar a diferença entre o Direito e a
Justiça. Em países da Europa e da América do Norte, tal potencial autoritário
apresenta-se também por meio da consolidação daquilo que o filósofo italiano
Giorgio Agamben chama de “estados de
exceção permanente”, ou seja, ordenamentos jurídicos que funcionam em
situação de exceção através da criação de situações nas quais não se é mais
possível distinguir estados de guerra e estados de paz.
Nesse
contexto, vale a pena lembrar-se da ideia de Jacques Derrida, para quem só se
pode falar em democracia por vir. Uma sociedade democrática é caracterizada por
não se realizar completamente e, por isso, por reconhecer a normalidade das
dissociações entre o Direito e a Justiça, por reconhecer o caráter
desconstrutível do ordenamento jurídico. Ela reconhece que muitas ações contra
o Estado Democrático de Direito são modalidades políticas de lutas sociais,
capazes de fazer referência a exigências mais amplas de Justiça.
Se esse for o caso, então deveríamos chamar nossa condição atual como uma situação de
‘neodemocracias’. Uma neo-democracia não é uma democracia em processo de
aperfeiçoamento, mas uma figura político-institucional marcada por um sistema
de bloqueios intransponíveis em direção à institucionalização da soberania
popular e à implementação da democracia direta nos processos de gestão de
governos. Tais bloqueios deixam evidente a permeabilidade da estrutura de todos
os grandes partidos aos interesses econômicos hegemônicos, assim como a
plutocracia que emerge sempre dos embates eleitorais e a impossibilidade do
aparecimento de uma pluralidade de vozes dissonantes no processo de formação da
opinião pública mediada pela grande imprensa.
Contra
as neodemocracias não é possível reforma alguma. Elas precisam ser superadas
através da implantação, cada vez mais forte, de mecanismos que nos coloquem
para além dos limites da democracia parlamentar. Por isso, o grande embate
daqui para frente passará pela definição dos rumos do debate em torno da noção
de “democracia direta”.
Carta Capital
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