Jacques Gruman
Faz tempo, amigos guardam uns paninhos no armário. São babadores. Vez por outra, dão uma olhada, sonham o tempo de usá-los, suspiram, fecham a porta. Pertencem ao Movimento (ou será Clube?) dos Sem-Netos, ampla coalizão de ansiedade variável, mas esperança imperturbável. Ou quase.
Dei adeus ao Movimento há quase quatro anos, nas asas do Miguel. Agora, meu time foi reforçado pela ala feminina. Laura chegou, a máquina de lavar não dá conta da limpeza dos babadores. Perseverai, aflitos por buás e Hipoglós, seu dia chegará !
Bebês e crianças convocam, intimam, exigem. Laboratório sofisticado, usam formas de comunicação que nem sempre compreendemos. Não há dicionários para o “criancês”. O diálogo passa por linguagens inventadas, intuídas, pacientes. Adultos, somos com frequência estragados por arrogâncias que assustam e inibem aqueles que apenas querem o direito de crescer em liberdade. Será que temos jeito?
Miguel e Laura, para onde vai o mundo que lhes tocará viver? Se pudesse resumir tudo em uma palavra, responderia: velocidade. O que valia para meu avô, hoje não passa de referência empoeirada. Praticamente nada sobrou daquele tempo. Tecnologias e emoções tornaram-se efêmeras, descartáveis. O que para uns é sinal de progresso, para mim assusta. Cheguei a assistir alguns episódios de Flash Gordon. Era romântica do cinema e da televisão, o sujeito viajava pelo espaço e usava pistola de raios. Um espanto ! Vilões e objetos eram incinerados por feixes de luz. Leio agora que os Estados Unidos apresentaram a mais nova máquina de matar. É um canhão que emite raios laser e, pela primeira vez na história, será possível destruir pequenas aeronaves e embarcações com essa forma concentrada de energia luminosa. Tudo pela modesta quantia de um dólar por disparo. A vida está cada vez mais barata. Daí para armas portáteis e super canhões não levará muito tempo. O planeta Mongo que se cuide. Não se iludam, Miguel e Laura, com o discurso manhoso dos militaristas. São eles os mesmos que matam crianças a granel e classificam o assassinato como “efeito colateral”. O recente massacre de 11 crianças no Afeganistão, numa operação da Otan, está virando triste rotina. São seus contemporâneos, meus netos, tratados como matéria orgânica descartável.
Olho à minha volta e vejo triunfar estilos de vida artificiais, gente à deriva buscando analgésicos virtuais e “espirituais” para um vazio que não suportam. Um velhinho genial (será que algum dia vocês ouvirão falar dele?) foi entrevistado em 2011. Deitou falação e, heresiadas heresias, excitou neurônios. Contou que um jovem lhe dissera, orgulhoso, que conquistara quinhentos novos amigos em um único dia. No Facebook, é claro. Surpreso, e com dose alentada de ironia, nosso velhinho comentou que, em 86 anos de vida, nem remotamente conseguiu acumular tantas amizades. Claro que amizade, para a geração dele e mesmo para a minha, não tinha sido vulgarizada pela miragem de teclados e monitores. Era uma horta, clamando fertilização, cuidados, idas e vindas, altos e baixos. Um cultivo existencial, desconhecido pelos que estão mais preocupados com estatísticas e imagens. Ruptura era um acontecimento doloroso, que se precisava elaborar. Não havia botão “delete” para jogar no lixo uma “amizade”. Esse empobrecimento das relações humanas, Miguel e Laura, será a Cuca, o Bicho Papão, de vocês. Resistam. Offline. Enfrentem o medo de não saber, de antemão, que uma relação dará certo. Sejam jardineiros generosos. Ah, o velhinho se chama Zygmunt Bauman e é sociólogo.
Outro velhinho, que ficou famoso por se deixar fotografar com a língua de fora, teria dito o seguinte (digo teria porque a internet não é fonte totalmente confiável): “Temo pelo dia em que a tecnologia vai superar a interação humana. O mundo conhecerá, então, uma geração de idiotas”. O cara tinha uma baita imaginação, revolucionou a Física e, de quebra, desenhou o que, temo, já esteja em curso. E olhem que Einstein não chegou a trabalhar com computadores. É preciso qualificar a idiotice à qual ele se referiu. Leio que festas de formatura do ensino médio estão se transformando em espetáculos cinematográficos, a custos indecentes. O que nasceu, concedo que de forma careta, como confraternização e catarse para conclusão de um ciclo de vida, agora é plataforma de ostentação e luxo. É o embotamento dos significados, regido pela reificação do consumo. Aliás, consome-se de tudo. Inclusive a privacidade. Certas mídias eletrônicas servem para que desesperados, ociosos e carentes anunciem que estão com dor de dente, tiveram um orgasmo na noite anterior, compraram um par de sapatos, pisaram em cocô de cachorro. Não suportam o silêncio. Precisam escancarar intimidades, numa simulação medíocre de relacionamentos reais. Para dar mais colorido a essas indiscrições, tem gente tornando públicas sequências de seus DNA ! Miguel e Laura, valorizem o silêncio. Aprendam a olhar sem a mediação de um chip. Usem seus conteúdos para acolher. Descubram a sabedoria do vagar.
O impacto do filme 2001: uma odisseia no espaço sobre minha geração foi enorme. Cataratas de discussões sobre o famoso monolito descoberto em escavações na Lua. HAL, um computador, havia sido programado para uma missão espacial de longo alcance. No meio da jornada, resolve desfazer-se da tripulação humana para que a missão fosse bem sucedida. Máquina tomando decisões à revelia de seus criadores. Ainda hoje, seria bom assunto numa roda de chopp. Pequeno detalhe: estamos perto desse cenário. A internet começou como instrumento de comunicação entre pessoas. Depois, entre pessoas e processos. Projeta-se o tempo em que a rede transitará para a comunicação entre dispositivos. Máquinas dialogando com máquinas. Especialistas convidados pela Folha de São Paulo apontaram algumas possibilidades do mundo virtual para as próximas três décadas. Época em que vocês, Miguel e Laura, estarão no que as múmias chamavam de flor da idade. Partes do corpo humano serão compartilhadas com dispositivos eletrônicos. Chips cerebrais terão aplicativos que tornarão disponíveis os “sonhos mais interessantes do planeta”. Com tradução simultânea. As pessoas, cada vez mais androides, “vestirão” tecnologia. A internet estará nas roupas, nos móveis, nos carros, tudo conectado. Implantes oculares e espinhais serão rotina. A privacidade, comentou um dos convidados, “se tornará um luxo caro”. Uma parte especialmente assustadora: “Vestiremos aparelhos capazes de gravar foto e vídeo ininterruptamente. Objetos do dia a dia estarão conectados à internet, poderão conversar entre si e estarão aptos a publicar informação por conta própria”. Não sigo adiante para que não pensem que se trata de mensagem psicografada de Vincent Price.
Destino não existe. Somos arquitetos e vítimas daquilo que construímos, limitados pelas condições materiais do nosso tempo. Miguel e Laura, o mundo de vocês terá sua impressão digital. Por ação ou omissão. Caminhem com cuidado, pisem com sensibilidade no terreno onde gerações fecundaram sonhos impossíveis, recolham os escombros das casas que abrigaram alegrias e expectativas, montem o quebra-cabeças de peças que não existem. Flutuem, chamem os poetas, os utópicos. São bons conselheiros. Leiam, duvidem, protestem, amem, inquietem-se. Joguem dados com a Lídia, que o Fernando Pessoa imaginou e vale mais do que qualquer tratado de felicidade instantânea ou patranha mística:
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Carta Maior
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