E lá se vai o dinheiro público
Além de financiar campanhas e comprar favores, sistema político oferece ao Legislativo mais um caminho para traficar influência: as emendas parlamentares individuais
Ladislau Dowbor
Ladislau Dowbor
O fígado não é bom conselheiro, ainda que, tanto em política como em religião, quando mal compreendidos, tenda a ser mais utilizado do que o cérebro. As ideologias, em particular, nos permitem ter certezas sem que precisemos nos dar ao trabalho de entender. Temos de resgatar o bom-senso, e isto inclui aceitar as nossas dimensões frequentemente pouco racionais.
O problema, quando se permite a apropriação privada de espaços públicos, em particular dos legislativos, é que atividades que não são legítimas ou que possam ser perniciosas para a sociedade passam a ser legais. Vimos isto com a lei que permite a compra corporativa das eleições, as transferências baseadas na taxa Selic, a adoção de juros comerciais surrealistas, a agiotagem legalizada. As emendas parlamentares constituem outro bom exemplo desta deformação da política.
Era natural que a nossa Constituição permitisse que o legislativo introduza alterações no orçamento proposto pelo executivo. A lei do orçamento, afinal, é uma das principais peças do governo, indica onde serão alocados os recursos, materializa as grandes opções. O processo de aprovação da peça orçamentária, no entanto, sofre duas grandes deformações.
A principal, como vimos em texto anterior, é a pressão para que se aloquem recursos prioritariamente a determinadas grandes obras propostas pelas empreiteiras, que se priorizem as estradas rodoviárias em vez do transporte ferroviário ou aquático, o agronegócio em vez da agricultura familiar, a grande empresa em vez da pequena e assim por diante. São deformações embasadas, conforme vimos, no congresso que temos: em virtude do financiamento corporativo das campanhas, temos uma bancada ruralista, das empreiteiras, das montadoras, dos grandes bancos, da grande mídia, e ao fim e ao cabo muito pouca bancada do cidadão, das pequenas e médias empresas, dos pequenos municípios, daqueles em suma que não têm como adquirir os “seus” políticos. As deformações geram o essencial do chamado “custo Brasil”, que onera toda a sociedade, em proveito de alguns grupos.
Um exemplo ajuda. De norte a sul do país, os nossos centros econômicos são quase todos portuários, inclusive no sistema São Paulo-Santos. Transportar por água, em grandes distâncias e para grandes volumes, é como ordem de grandeza seis vezes mais barato por tonelada-quilômetro do que transportar por caminhão. As construtoras de estrada, as montadoras de caminhões, as redes de combustível e tantos outros, com fortíssima representação no congresso, agradecem. Isto é custo Brasil. Para o produtor, são custos externos que reduzem a sua competitividade.
A segunda deformação surge não quando se pressiona no legislativo por grandes orientações, e sim por pequenas vantagens. Um legislador calcula, por exemplo, que se conseguir aquela ponte para a sua cidade, não precisará nem gastar com a campanha para se tornar prefeito no próximo ciclo eleitoral. Poderá espalhar aos quatro ventos que “eu trouxe” determinada obra. E em geral é obra mesmo, pois é visível, tem localização bem determinada.
Como funciona? “Em 1993, veio à tona o escândalo que ficou conhecido como ‘anões do orçamento’. Naquela ocasião, os parlamentares indicavam emendas que propunham a alocação de recursos que deveriam ser destinados para entidades filantrópicas ligadas a parentes ou laranjas. Além disso, verificou-se a inclusão de grandes obras no orçamento em face de acerto com as empreiteiras beneficiadas” A política não é uma ilha, a empreiteira agradece.
No caso da emenda, não se dá dinheiro ao legislador, gera-se um favor que lhe dispensará gastos com a próxima eleição. Com 25 emendas por parlamentar, os volumes se tornam muito significativos. No caso das emendas por bancadas, os deputados apresentam coletivamente e depois repartem, são as chamadas “rachadinhas”. A criatividade reina. Marcos Mognatti apresenta os números de 8.807 emendas, valendo 15,2 bilhões de reais, no orçamento da União em 2007. Ao aceitar (ou não) a emenda proposta, o executivo tem na mão o poder de assegurar ou não o futuro político do legislador. Cômoda mas escandalosa ruptura da divisão de poderes, fonte de uma corrupção sistêmica permanente.
O papel do legislativo está na nossa Constituição. No artigo 74º, reza a missão de “avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União”, bem como de “comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária” etc. Não há nenhuma base legal para o legislativo se substituir ao ministério dos transportes, e substituir a necessária coerência da peça orçamentária por uma colcha de retalho de interesses fragmentados. Escolher qual ponte será construída, planejar uma visão integrada de transportes, fazer os estudos que permitam definir as prioridades técnicas, é papel do executivo.
Há razões, compreensíveis, que obrigam municípios pequenos a recorrer a legisladores para obter determinadas obras. “A baixa capacidade fiscal dos municípios brasileiros, e a visão de que os parlamentares têm por dever de ofício levar recursos – entenda-se obras – para suas bases eleitorais, dificulta uma discussão mais ampla dentro do Congresso para que se modifique o foco das emendas parlamentares, para que não mais sejam classificadas como paroquiais.” O mesmo Mognatti apresenta em tabela o quanto os pequenos municípios dependem das transferências “de cima”. Levar recursos a estes municípios é bom, mas o objetivo legítimo é evidentemente de se reforçar as transferências formais, e não a fragmentar o orçamento por demandas picadas.
O fato é que, a partir dos anos 1990, a prática se generalizou, e hoje grande parte do debate sobre a peça orçamentária proposta não versa sobre as prioridades dos transportes ou da educação, mas sobre as demandas picadas que representam muito mais a estratégia de sobrevivência de determinado representante público, do que a estratégia de desenvolvimento que o país ou uma região precisa. Imensos recursos são assim desviados dos seus fins sistemicamente mais adequados, e, ponto importante, todo o processo de cooptação de numerosos representantes, generalizado nos anos 1990, tornou-se prática “aceita”. Ou pelo menos, “legalizada” pela prática cotidiana dos diversos níveis legislativos do país. De certa forma, o “comprovar a legalidade e avaliar os resultados” virou um mercado persa.
Aqui começa uma situação bastante confusa. O homem público não se apropriou de dinheiro público, não fez, por exemplo, como faziam tantos coronéis, obras na sua fazenda com dinheiro público. A construção da ponte, mesmo que destoe do plano geral de expansão da infraestrutura de transportes, pode ser útil. No entanto, ao não ser uma obra do governo em geral mas um “aporte” bem identificado de quem “trouxe” a ponte, geram-se vantagens pessoais evidentes, inclusive com redução dos gastos eleitorais na próxima disputa. Isto nos traz para o problema central dos limites entre vantagens pessoais e vantagens políticas. Quando as fronteiras são confusas, o convite a ultrapassá-las é claro.
Não temos o monopólio dos descaminhos do dinheiro. Lessig cita um senador americano, Russell B. Long, segundo o qual “apenas um fio de cabelo separa propinas e contribuições” [Lawrence Lessig, Republic Lost, p. 8]. A França teve há alguns anos um problema de “contribuições” da empresa Total de petróleo para vários membros do governo, no sentido de obter decisões favoráveis à sua expansão. Consta que inclusive houve dinheiro diretamente no bolso. Quando estourou o escândalo, depois de muita lavagem de roupa, houve o que me pareceu serem medidas de bom senso.
Em resumo, a apropriação de dinheiro público para fins pessoais, ou seja, o pagamento ou recebimento de propinas que permitem comprar um belo sítio, ou arrumar a piscina da casa, é claramente definido como roubo. É roubar dinheiro que, por ser público, é dinheiro dos outros. Endureceram as leis relativas a este tipo de prática, tolerância zero.
Este tipo de ação foi claramente distinguido do empurra-empurra de vantagens para que seja aprovada uma lei. Um membro do governo considera, por exemplo, que é essencial se alterar determinada legislação sobre políticas públicas de saúde. Sabe que há oposição de outros partidos, apoio do seu, e um espaço significativo, frequentemente chamado de “baixo clero”, que vai optar por vantagens indiretas que este projeto lhe possa trazer. Ou ainda, vantagens diretas. Os promotores e opositores inicialmente se comportam elegantemente, trocando argumentos de alto nível político. Nos finalmente, estarão passando rasteiras abomináveis, sempre com a convicção que o baixo nível foi originado no adversário. E se faltam dois votos, e estes dois deputados precisam obter determinada vantagem…No baixo clero, não se faz ponto sem nó.
É essencial fazer aqui com clareza esta distinção. Há gestores públicos que batalham a mudança de leis que, segundo a sua convicção, precisam ser alteradas, e passam além da legalidade para que a lei seja alterada, sabendo perfeitamente que há um segmento decisivo no legislativo que optará por quem lhe assegure mais vantagens. E que os seus adversários políticos também estão concedendo estas vantagens. Não devem estes representantes ou gestores públicos ser colocados no mesmo nível dos que simplesmente se apropriam de dinheiro público para fins privados. Este tipo de atividade tem de ser combatido? Sem dúvida. Mas através das reformas políticas, e não da criminalização de uns e branqueamento dos outros.
A melhor imagem aqui é quando, no jogo de futebol, uma bola vai ser centrada na área, onde há um amontoado de jogadores disputando a cabeçada decisiva. Ao ver a saraivada de empurrões, tapas, camisas puxadas e rasteiras – tudo o mais discretamente possível no início e logo de maneira selvagem – o juiz apita freneticamente, corre para o rodamoinho, e agita os braços de maneira eloquente, transmitindo para os jogadores que agora o olham como cordeiros injustiçados, a mensagem definitiva de que não tolerará semelhante comportamento. Afasta-se o juiz, e espera que o agarra-agarra seja apenas mais comedido. Este juiz está lidando com pessoas escolarizadas, do gênero homo sapiens, e que sabem tudo do é legal e ilegal num jogo de futebol, conhecem as regras do jogo. A competição de última hora vira circo. É ilegal, mas não é o mesmo tipo de crime de quem rouba.
Os custos maiores vêm do fato dos políticos passarem a tratar de interesses paroquiais, mencionados acima, prejudicando a visão dos interesses da nação. Para muitos, na nossa cultura política, ainda aparece legítimo um deputado defender interesses de quem o elegeu, ou de quem financiou a sua campanha. Mas a deformação da política torna-se inevitável. Para Jorge Hage, Controlador-geral da União, “as emendas orçamentárias individuais pulverizam os recursos públicos em obras de interesse público menor; esvaziam a discussão sobre temas de interesse nacional, pois o parlamentar federal passa a exercer o papel de vereador; e representam o principal caminho para os desvios de dinheiro público verificado pela Controladoria-Geral da União (CGU).”
Estamos aqui passando a mão na cabeça da ilegalidade? Longe disto, estamos tentando solucionar, ir além de fazer de conta que pegamos o culpado. Não é secundário que, no caso dos grandes acusados no Supremo, ninguém tenha embolsado dinheiro, e que sequer disto sejam acusados. No caso da França mencionado, enquanto a apropriação foi drasticamente criminalizada (tolerância zero), para o empurra-empurra em torno das votações, o problema não foi enfrentado criminalizando os políticos que ultrapassaram os limites ao batalhar as suas posições, e muito menos criminalizando um lado e inocentando outro. Foi enfrentado endurecendo as regras, tornando muito mais transparentes os processos, definindo mais claramente os mecanismos.
No nosso caso, é vital reduzir, – e voltamos aqui ao nó górdio do financiamento corporativo das campanhas – o número de representantes que apenas empurram interesses pelos quais são pagos, e cujo interesse principal, portanto, não é o interesse público. A lei que entrou em vigor em maio 2012, Lei da Transparência, que obriga todos os segmentos da administração pública, em todos os níveis de governo, a fornecer de maneira transparente as informações sobre as suas transações, faz parte deste gradual e penoso saneamento político. Não é só, evidentemente, no nível federal que se trava a luta. Um No caso do Estado de São Paulo, segundo a imprensa da Assembleia, “uma proposta, assinada por deputados do PT paulistas, sugeriu a criação de um módulo específico no SIGEO – Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária – para acompanhamento da execução orçamentária. Lá seria possível encontrar projetos especificando o número da emenda, nome e partido do parlamentar; nome do órgão, do programa e da ação referente à emenda; valores previsto, empenhado e pago. A proposta foi vetada (aqui e aqui).” A lei da ficha limpa foi outro avanço. Mas chegará a hora em que devermos enfrentar a racionalização e atualização do nosso processo decisório, o que envolve tanto a dimensão da área política como da área privada que dela se apropria.
No conjunto, seguimos aqui as visões de Lawrence Lessig, jurista de Harvard que já trabalhou na Corte Suprema dos EUA: quando tantos praticam ilegalidades, é preciso olhar o sistema, gerar transparência, mudar o sistema de financiamento, introduzir sistemas mais eficientes de gestão, resgatar a dimensão pública do Estado. Os grandes desvios são suficientemente grandes para serem legais. Apesar das imensas resistências nos diversos níveis de legislativos e das grandes corporações, a reforma política está amadurecendo. Encontrar bodes expiatórios não resolve. O sistema permanece, e agradece
Emendas Totais e Emendas Puras – 2004 a 2007:
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