Colono em Itaparica precisa da Bolsa Estiagem |
Reféns da seca XV
Na maior seca dos últimos 50 anos no Nordeste, destacada ontem na telinha mágica do Jornal Nacional da TV-Globo, que foi no rastro de imagens já mostradas por este blogueiro da matança do gado de Cidrim, um velho criador em Serrita, o bicho homem também não está tombando morto no chão de vidas secas por causa grande abrangência dos programas sociais.
A Bolsa Família, o Seguro Safra, a Bolsa Estiagem e, enfim, a aposentadoria, retirados num cartão magnético nas agências oficiais, como a Caixa Econômica, deram lugar a humilhante esmola das famigeradas frentes de emergência dos anos 80 e 90. Mudou só a forma, o conteúdo é o mesmo, a exploração é a mesma.
As legiões de beneficiários são os mesmos. Têm a mesma cara, sofrem da mesma dor, são dependentes de uma indústria. A indústria é a da seca, cujo maior símbolo na caatinga é o caminhão pipa e o mais novo as cisternas de plástico doadas aos que têm sede.
Descendente de raça indígena em Cabrobó, acostumada a dar duro na vida, “dona” Amercinda Joaquina Nascimento, 74 anos, sete filhos, 25 netos e cinco bisnetos, não sente mais tão forte os efeitos da seca porque filhos, noras e agregados sacam, todo mês, o dinheirinho da Bolsa Família.
Encontrada, ontem, já ao entardecer, sentada no acostamento da estrada que liga Santa Maria da Boa Vista a Cabrobó, onde mora, a velhinha abriu o coração diante da filharada que estava esperando uma carona para chegar em casa depois de mais um dia de sol causticante na fazenda do patrão.
“Já vi muitas secas em que a gente era chamada para invadir as feiras e mercados. Era o nosso grito de fome, o nosso protesto contra o governo. Hoje, a gente não precisa gritar. Basta ter um cartão magnético da Caixa”, disse, referindo-se ao programa Bolsa Família.
Como ela, a família do criador de cabras José Ferreira Lima, 68 anos, da fazenda Badejo, em Santa Maria da Boa Vista, escapa da morte no chão euclidiano por causa da Bolsa Estiagem, esta criada e mantida pelo Governo do Estado.
“Meu filho, eu vou me virando aqui como Deus quer, vendo uma cabrinha aqui e acolá, mas minha mulher está recebendo uma ajuda do Governo”, confessa Ferreira.
Pai de oito filhos, Ferreira mora numa casa decente, que não é de taipa, tem um aprisco com um bom lote de cabras e bodes, duas éguas e dois jumentos e um dos seus filhos, este residente na zona urbana de Santa Maria da Boa Vista, o visitou ontem num carro, recentemente comprado.
“Não somos miseráveis, tem gente mais sofrida por aí”, diz ele, que, mesmo assim, não abre mão do direito da mulher de ser beneficiária da Bolsa Estiagem. Como nas frentes de emergência, onde os critérios eram diferentes, os programas sociais criados por Fernando Henrique, ampliados por Lula e mantidos por Dilma, também tem as suas falhas.
João Luis do Nascimento, 31 anos, deixou a roça, onde arrancava mato e preparava a terra para receber a invernada num tempo que ainda chovia no Sertão, para engrossar a turma dos peões que vivem do comércio das frutas que brotam nos campos irrigados de Santa Maria da Boa Vista.
Sua rotina é viver em cima de um caminhão apinhado de goiaba para entregar na freguesia espalhada no comércio da cidade. Mesmo com renda assegurada – ganha uma diária de R$ 30 – Luis também vive, indiretamente, do Bolsa Família. A mulher, desempregada, ganha R$ 140 do Governo para completar a renda familiar.
Esta é uma seca com características diferentes. O homem está maltratado, mas na verdade vai escapando. Quem de fato não está conseguindo escapar é o rebanho bovino, que pode ser dizimado se não chegar às chuvas das trovoadas de dezembro.
Como Petrolina, banhada pelo rio São Francisco, Santa Maria também tem dois sertões: o de sequeiro, pobre, e o da irrigação, rico.
Na beira do rio da unidade nacional, o gado também morre, como testemunhamos, ontem, ao lado da adutora Garças, abandonada, em Santa Maria da Boa Vista, a menos de 500 metros da beira do São Francisco.
Fulgêncio, em terras de Santa Maria da Boa Vista, é a Canaã dos milhares de camponeses banidos de suas terras há 25 anos pelo lago de Itaparica, que inundou cidades, fazendas e distritos. Na terra prometida e dada pela Chesf, de onde se retira, hoje, a maior produção de banana da região, também existem os dependentes da nova “emergência”.
Colono oficial e não invasor do projeto, plantador de banana e melancia em seu lote, José Francisco da Silva, 30 anos, diz que só consegue manter a prole de sete filhos porque a mulher também é beneficiária do Bolsa Estiagem.
“Aqui, está ruim de produzir porque a água é fraca”, diz, referindo-se a baixa oferta do líquido que chega até ao seu plantio. “Minha sorte é que minha mulher conseguiu entrar no programa das bolsas”, acrescenta Silva.
Segundo ele, com a renda do programa social, está garantido o leite das crianças. “Antigamente, a gente produzia muito aqui, mas agora a água que chega só dá mesmo para manter a banana viva. A bolsa chegou em boa hora”, revela.
Bem distante do Fulgêncio, hoje região de conflito entre colonos legalizados e invasores, “seu” José Correia dos Santos, 87 anos, nove filhos, já viveu bem, sem nunca entrar nas estatísticas dos manipulados pela indústria da seca, quando, em 1985, chegou ali a água da adutora do Garça, aberta pelo ex-governador Roberto Magalhães, mas desativada 10 anos depois.
Do quintal da sua, ele avistava a água da barragem de Lagoa da Pedra jorrando e irrigando a plantação. “Tudo que a gente plantava aqui dava bem, hoje virou esse deserto que você está vendo aqui, meu filho”, observa Correia, que vive, hoje, da sua aposentadoria e da aposentadoria “da minha velha”.
Mas os filhos, que não aguentaram o sofrimento e o abandono do deserto da Lagoa, foram morar na cidade e lá três deles também estão aumentando o exército dos dependentes da Bolsa Família. Lá no seu cantinho, onde improvisou uma queda de água no telhado para encher dois potes de barro quando chover, “seu” Correia vive de amargas recordações.
Não só de ter perdido o direito a água em abundância no quintal de casa, mas de sofrimento das secas que se sucedem. “A gente vive pelejando. Vi secas brabas, como a de 32, mas esta, que a gente liga a televisão e vê que não foi só por essas bandas de cá, nunca tive notícia de tragédia maior. O gadinho, coitado, tá morrendo todo”.
Em Salgueiro, santuário da seca, onde nasceu a Sudene de Celso Furtado, tem sido difícil a vida da jovem Josilane Pereira. Emprego, com o fim das obras da ferrovia Transnordestina e a paralisação da Transposição, não se encontra mais. Água? Na torneira, rareia e ainda chega por uma adutora entregue na gestão de Roberto Magalhães, que está precisando ser duplicada.
A dor maior dos últimos dias é não conseguir ser atendida na rede pública de saúde do município, como acontece com milhares de pessoas na cidade sem planos de saúde, dependentes do SUS. Ela conta que, há quatro meses, tenta levar a filha de cinco anos para um otorrino e não consegue.
“Minha filha está sofrendo muito, mas a gente chega ao posto de saúde e não encontra atendimento, porque o otorrino só atende dois casos por mês”, desabafa.
Blog do Magno
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