terça-feira, 17 de agosto de 2010

Batalha de mitos: casamento ou liberdade?





Em 1973, em plena efervescência do feminismo americano, Marabel Morgan publicou um livro de conselhos às mulheres que quisessem construir relacionamentos satisfatórios ou reanimar casamentos moribundos. Chamava-se "The Total Woman" (A Mulher Total) e foi um best sel-ler. A autora propunha que as mulheres se submetessem à liderança de seus maridos e fossem sempre sexy e atenciosas. Ficou famosa a sugestão de esperar a chegada do homem, às seis da tarde, de "baby-doll" e salto alto (variando cores e modelos, pois a surpresa é a mãe do desejo).

Na época, li o livro com raiva. Seu sucesso provava que a América profunda continuava longe do espírito dos anos 60. As propostas de Morgan só podiam seduzir um público que, para nossa geração rebelde, era o protótipo da alienação. Os verdadeiros casais felizes, pensávamos, serão os que inventaremos, feitos de indivíduos que se manterão autônomos em qualquer relacionamento.

Não deu muito certo: os anos 60 não inventaram o casal feliz. Talvez as reivindicações de autonomia e de liberdade não sejam os melhores ingredientes para um bolo de casamento.

Eis que as idéias de Morgan encontram uma segunda vida no recente livro de Laura Doyle: "The Surrendered Woman" (A Mulher Rendida -ou submissa, vencida, entregue). Doyle acaba de causar sensação na imprensa americana (e brasileira: deu uma entrevista para a "Veja" no fim de janeiro), propondo 27 conselhos às mulheres para que vivam casamentos valiosos.

Como no caso de Morgan, é fácil reduzir o livro de Doyle a uma série de sugestões pitorescas que parecem feitas para suscitar piadas. Há, por exemplo, a proposta de nunca criticar o marido que está dirigindo. Imagine que ele pegue a auto-estrada na direção errada. Você, mulher, não diga nada, deixe que ele se afaste de sua destinação durante quilômetros, mas não critique, não se faça de sabida e não profira nenhum comentário sardônico.

Exagero? É possível, mas Doyle sabe muito bem qual é o pior momento de um casal: quando os cônjuges colocam o prazer de zombar, de criticar e de controlar o outro acima do que poderiam esperar do convívio harmonioso.

Marabel Morgan também sabia disso e escrevia: "O que causa a maioria dos problemas em seu casamento? Acho que o culpado é geralmente o conflito entre dois egos separados... cada um gritando "eu, eu, eu".".

Moral da história: para inventar um relacionamento agradável e produtivo, o projeto de conviver deve ser mais importante do que as exigências individuais. No fundo, o que Doyle pede não é tanto que a mulher se submeta ao marido, mas que ela se submeta ao bem da relação. Sem isso o casamento não passa de uma arena onde dois indivíduos gostam de se pegar.

A maioria das pessoas que se queixam de sua vida de casal não está disposta a sacrificar quase nada para que a relação funcione. Queixam-se, mas não querem negociar suas exigências solitárias. Decida: é mais importante para você ter razão numa briga ou conviver amorosamente com o outro? É mais importante prevalecer ou desistir para que o companheirismo seja mantido?

O casamento perfeito é um grande ideal da modernidade: um sonho de felicidade amorosa, sexual e reprodutiva. Mas frequentemente esse ideal é abstrato: todos dizem que querem realizá-lo, mas poucos estão dispostos a colocar as mãos na massa.

Somos este paradoxo: sonhamos com casamentos perfeitos, mas curtimos sobretudo nossas neuroses celibatárias.

As leitoras de Doyle podem objetar: tudo bem, é necessário dedicar-se ao bem do casal, mas por que essa tarefa seria só das mulheres? Cadê os sacrifícios pedidos aos homens? Doyle responde que obviamente ambos os parceiros devem entregar as armas. Se ela se endereça às mulheres, é porque conhece bem os jeitos de elas sabotarem um casal. Os homens que encontrem seus caminhos próprios. De qualquer forma, a pergunta "por que logo eu deveria mudar antes do outro?" é sempre uma reação celibatária que seria melhor esquecer. Quem se preocupa com isso não está se preocupando com o casamento, apenas não quer perder uma competição com o parceiro. O que importa mais, enfim: o relacionamento ou a vontade de ganhar um jogo no qual quem se corrigisse primeiro perderia por humilhação?

O ideal do casamento perfeito é um mito moderno -e uma maldição, por ser um imperativo impossível de ser realizado. Ao ler Doyle, surge a suspeita de que talvez esse ideal seja perfeitamente realizável, mas com a condição de querer, ou seja, de sacrificar uma porção de nossas ambições de autonomia. O problema é que idealizamos a autonomia ainda mais loucamente do que o casamento perfeito. Em suma, sofremos de uma batalha entre mitos.



Calligari

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