Não é apenas o desprezo às garantias fundamentais e ao devido processo legal que chama a atenção em texto obscurantista de setores do Ministério Público
Desde que foi implantada em caráter experimental no Fórum Criminal da Barra Funda, em 2015, a audiência de custódia está mudando aos poucos as formas de tratamento dos presos por parte da Polícia Civil, da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana. A inovação, que foi apoiada pelo Conselho Nacional de Justiça, pela Defensoria Pública de São Paulo e pelo Departamento Penitenciário Nacional, obriga os distritos policiais a apresentar quem for detido em flagrante a um juiz do Departamento de Inquéritos Policiais, para a realização de uma audiência no prazo máximo de 24 horas.
Na audiência, o juiz decide se é necessário converter a prisão em flagrante em preventiva, se a prisão deveria ter sido efetuada e se o preso deve ser libertado ou pode ser detido provisoriamente, com ou sem a imposição de medidas cautelares, depois de entrevistá-lo, de analisar a folha de antecedentes e de ouvir as alegações de seu advogado ou de um defensor público e as manifestações da promotoria. O juiz também verifica se houve abusos durante a prisão em flagrante e se o autuado foi submetido a maus-tratos, podendo requisitar exame clínico e de corpo de delito. Assim, em tese só fica preso quem representa perigo para a sociedade.
As primeiras avaliações das audiências de custódia, feitas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), foram positivas. Elas mostram que a audiência de custódia evitou que centenas de pessoas detidas em flagrante passassem meses em carceragens policiais e cadeiões, reduzindo com isso o número de presos provisórios. Também se revelou um eficiente mecanismo de controle da violência policial, uma vez que dificulta que marcas de agressão sejam escondidas e permite que os presos denunciem tortura.
Com base em dados coletados pelas audiências de custódia realizadas na capital entre fevereiro de 2015 e agosto de 2017, o TJSP constatou que 76,1% dos presos em flagrante relataram ter recebido golpes de cassetete e choques elétricos de policiais militares; 21,4% contaram ter apanhado de policiais civis; 1,8% afirmou ter sido agredido pela Guarda Civil Metropolitana; e 0,7% disse ter sido submetido a maus-tratos por agentes de segurança que atuam em espaços privados ou públicos. As denúncias foram analisadas pela Secretaria da Segurança e as que tiveram a veracidade confirmada motivaram a abertura de sindicâncias.
Algumas ONGs reclamam que essas apurações são morosas, mas não deixam de reconhecer o avanço civilizatório propiciado pelas audiências de custódia. Mais importante ainda, o êxito das audiências de custódia desautoriza uma recente iniciativa de 150 promotores de Justiça de todo o País, que assinaram um manifesto contra o que chamam de “bandidolatria”: a tendência do Legislativo e de movimentos sociais de se preocupar mais com os direitos de delinquentes do que com suas vítimas. Um dos objetos das críticas desses promotores é, justamente, a audiência de custódia. “Bandidolatria mata. Desencarceramento mata. Impunidade mata”, conclui o manifesto.
Não é apenas o desprezo às garantias fundamentais e ao devido processo legal que chama a atenção nesse texto obscurantista de setores do Ministério Público. Também fica evidente a pretensão de seus signatários de atuar como justiceiros, como se o Ministério Público estivesse acima das instituições, inclusive a Justiça. Fica evidente ainda o desprezo à segurança jurídica, como se o problema da violência criminal pudesse ser equacionado por mais violência policial, sob o patrocínio de procuradores sem o senso mínimo de humanidade e de direito e incapazes de perceber o quanto suas ideias de segurança são próximas do que pregavam os juristas nazistas.
A experiência da audiência de custódia merece aplauso, por reafirmar a segurança do direito com base em fundamentos éticos e defesa das garantias fundamentais. Já o manifesto desses promotores é uma aberração, já que a ênfase à ordem absoluta, com o desprezo aos direitos, conduz à barbárie e à banalização da violência.
Estadão
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