“carne de excrementos humanos” |
Vivemos tempos realmente estranhos. Chegamos no futuro e parece que a realidade começa a realizar, de maneira irônica, as distopias sci fi dos anos 1970 como por exemplo, “No Mundo de 2020” (Soylent Green, 1973, com Charlton Heston) no qual uma empresa produzia um tablete verde para alimentar as massas pobres, enquanto somente a elite tinha comida de verdade. Confirmando a vocação paulistana vanguardista de laboratório para o “brave new world”, o prefeito João Doria Jr. anuncia o programa “Alimento para Todos”, numa parceria com a Plataforma Sinergia para processar restos de alimentos que se transformarão em um “granulado nutritivo” para a “camada mais pobre da sociedade” – seguindo a trilha do Japão que já possui “carne de excrementos humanos”. Como “gestor sustentável”, Doria Jr. acredita que todos ganharão: não haverá nem desperdício e nem fome. Se no filme de 1973 tudo era envolto em uma conspiração, hoje tudo é cinicamente explícito através da “Pobretologia” - resolver o problema do Capitalismo que produz restos (pobres, famintos, desempregados, idosos, aposentados, excluídos etc.) e que precisam ser reciclados de forma cinicamente “sustentável”: desempregados viram empreendedores, idosos se convertem em target de consumo chamado “Melhor Idade” e pobres viram biodigestores de restos orgânicos.
Parece que nesses últimos tempos alguns prognósticos desse Cinegnose vêm sendo confirmados.
Primeiro, assim como o Deserto de Nevada (EUA) foi o imenso laboratório a céu aberto no qual ocorreram os três episódios seminais que moldariam o mundo do futuro (Incidente ufológico de Roswell, a expansão de Las Vegas e as primeiras experiências com bombas nucleares), de forma análoga São Paulo é o laboratório de testes de preparação para o “brave new world” que aguarda o restante do País.
Também testes com duas bombas: a da água e a do “gestor midiático”.
A chamada “crise hídrica”, juntamente com a praça parque temático Victor Civita, testaram a nova ordem da sustentabilidade, no qual bens universais (como a água) são decretados como escassos e precários (mediante sucateamento proposital pelo Estado) para se tornarem privatizados e mercantilizados – clique aqui.
E a vitória acachapante de João Doria Jr. à prefeitura de São Paulo já no primeiro turno, confirmando a agenda desse vanguardismo paulista, já antecipada por este Cinegnose: a vitória eleitoral, para um cargo executivo, de um personagem midiático, egresso do mundo da publicidade, lobby e programas televisivos, cuja imagem é não mais de um “político”, mas de um “gestor” – sobre a sinistra profecia do Cinegnose – clique aqui.
E segundo, a capacidade da realidade superar a ficção literária (como temia o escritor maldito Charles Bukowski) ou, muitas vezes, realizar de forma irônica e estranha elementos da ficção. Mas não na sua literalidade: apenas realizando ironicamente o seu “espírito”.
O laboratório vanguardista de Dória Jr.
Então, o quê dizer do novo experimento deste laboratório vanguardista que é São Paulo? Com o estilo que lhe é peculiar no qual divulga aqui e ali projetos (que às vezes nem saíram do papel) fragmentados como fossem parte de um grande planejamento de gestão, o prefeito João Doria Jr. agora anuncia o programa “Alimento para Todos” no qual fará parceria com a Plataforma Sinergia, um think tank de orientação cristã.
A ideia (quintessência do discurso do gestor: evitar o “desperdício”) é que a Plataforma Sinergia recolha restos de alimentos que ainda estão em boas condições e dentro do prazo de validade e processada em fábricas para a produção da “Farinata”, um “granulado nutritivo”. O sistema de beneficiamento de alimentos da Plataforma Sinergia está associado a parceria com o programa “Save Food” da FAO-ONU.
Mas é óbvio que Dória Jr. colocará a sua marca mercadológica: em São Paulo o “granulado nutritivo” se chamará “Allimento” – sim, com dois “L” na manjada estratégia de branding para criar uma imagem de exclusividade a uma marca genérica. O “Allimento” será distribuído à “camada mais pobre da sociedade”.
Pobres que deixaram de ser explorados e que hoje entraram na categoria de excluídos, pela crise e o desemprego. Famintos, serão agora promovidos a “biodigestores” para a disposição final do lixo orgânico. Essa verdadeira ração poderá ainda ser útil para fazer, pães, bolos, sopas... até o destino final como excremento humano – o cocô.
Shit Burger
Mas nem isso será problema de “desperdício” – o horror de todo gestor que se preze. No Japão, o cientista Mitsuyuki Ikeda deu mais uma contribuição para a fome mundial: carne feita de excrementos humanos – placas de lodo com muitas fezes humanas são retiradas do esgoto, para serem extraídas proteínas e lipídios que passam por processo de intenso calor no qual todas as bactérias morrem. Para o produto final ter gosto de carne, coloca-se proteína de soja e molho de carne... Temos então o “shit burguer” – clique aqui.
Dr. Ikeda e o "Shit Burger"
Estamos aqui no campo de uma novidade nas relações entre realidade e ficção: a irônico-distopia – conjunto de filmes e produtos audiovisuais que, com o passar do tempo, foram promovidos a essa categoria não porque a realidade confirmou a distopia na literalidade. Realizou apenas o seu “espírito”.
Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (cartografias mente e Neuromarketing), Team America (gozação com os “efeitos colaterais” que viraram conceito na guerra ao terrorismo pós 2001) etc.
Pois tanto a parceria Doria Jr. e Plataforma Sinergia em São Paulo e o Dr. Ikeda no Japão materializaram o “espírito da coisa” do filme distópico protagonizado por Charlton Heston chamado No Mundo de 2020 (Soylent Green, 1973).
Heston faz um policial de Nova York que, ao investigar a morte de um rico empresário das indústrias Soylent Corporation, acaba descobrindo uma verdade estarrecedora: a principal fonte de alimento do planeta (o “soylent green”, um tablete verde supostamente feito de algas) era um composto feito a partir da reciclagem de mortos humanos. Enquanto somente a elite tinha acesso a carne, verduras e frutas, o restante da sociedade era sem saber antropofágica (desculpas pelo spoiler, não resisti...) - assista aos trailers no final da postagem.
A Pobretologia e o resto
Essa realização irônico-distópica entra no campo da “Pobretologia”, como bem definiu a professora e pesquisadora de História da Universidade Federal Fluminense Virgínia Fontes.
Uma nova forma de organização do Capitalismo (sob a égide do discurso midiático-científico da “Sustentabilidade” e do “Ambientalismo”) que visa dar conta de um problema decorrente do seu modo de produção tardio, a sociedade de consumo: o problema dos “restos” ou do “excremento social”: desempregados, pobres, excluídos, idosos, aposentados, doentes (psíquicos e somáticos), famintos etc.
Profa. Virgínia Fontes: a Pobretologia e o resto
Da economia política (esses “restos” como resultado perverso de um modo de produção e consumo baseado na descartabilidade, imediatismo e desigualdade), o problema é marotamente deslocado para o discurso da “gestão” – evitar o “desperdício” por meio da reciclagem dos restos.
Dessa maneira, desempregados são reciclados como “empreendedores”; idosos viram “Melhor Idade” na publicidade de novos serviços a essa faixa etária; pobres são reciclados por ONGs como objeto do “voluntarismo”; e excluídos famintos (que nem mais para ser explorados servem) viram biodigestores do lixo orgânico.
Porém, mantém-se intacto o sistema que reproduz velhos ociosos e precarizados, os desempregados e a fome. Mas a esperança dessa, por assim dizer, “reciclagem universal” escamoteia a luta de classes sob o discurso técnico e ecologicamente correto da “gestão”.
No caso particular da fome, viram “soluções globais” para a suposta crise da falta de alimentos. Sabemos que o problema alimentar mundial não é de produção (as décadas de tecnologia agroindustrial potencialmente superaram a demanda mundial por alimentos), mas de distribuição (político): as leis do mercado não permitem a igualdade na distribuição de alimentos – leia ABRAMOVAY, Ricardo, O Que é Fome, Coleção Primeiros Passos, Brasiliense, 1998.
Por exemplo, superproduções de alimentos são destruídas para se manter o valor de mercado determinado pela produção artificial da escassez.
Além do pobre, excluído e faminto verem o sistema que os fez surgirem ser mantido intacto e em pleno funcionamento, será privado a eles a própria experiência físico-sensorial com o alimento. Doravante esse será apenas sorvido e engolido.
Privado da experiência sensorial (a variedade de texturas e consistências – o frito, o grelhado, o assado, o ensopado etc.) e física (morder, arrancar, gastar até engolir) presente nas carnes, verduras, legumes e frutas, os esperançosos famintos irão apenas sorver e engolir alimento processado. Afinal, uma péssima contribuição para a saúde dentária, principalmente de crianças e jovens.
Então teríamos um novo “resto” na sociedade à espera de alguma ONG ou “Plataforma” que o recicle: aqueles que tiveram a saúde abalada pela cárie e doenças periodentais – perda das estruturas de sustentação dos dentes.
Cinegnose
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