O primeiro dos últimos dias de Temer
Jaldes Meneses
Após a votação de ontem da Câmara dos Deputados, liberando o presidente de responder no STF pelos crimes provados de organização criminosa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, começa hoje o primeiro dos últimos dias do governo Temer. O principal evento deverá ser as eleições de 2018, que promete emoções, sangue e suor. Mas ainda resta um rescaldo de tempo até o lançamento de chapas e convenções, entre abril e agosto. Como o tempo será preenchido até lá?
Antes de tudo, vale a pena observar que os tumultuados tempos recentes concentraram rápidas e decisivas transformações. O Brasil não será o mesmo depois da passagem de Temer. Ungindo por um Impeachment ilegal, o programa de governo “Uma ponte para o futuro” virou tábua de sobrevivência, a que Temer se apegou entregando a mercadoria que prometeu ao tal de mercado. Era isso ou a cadeia.
Entre as duas mais importantes mercadorias entregou primeiramente a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). A EC-95, cujo conteúdo deletério é subestimado até hoje, transforma em cláusula da constituição, feito uma súmula dogmática, a inviolabilidade da fatia das despesas financeiras no orçamento público, em detrimento das despesas primárias. Nem Deus teve tanto poder, já que nos deixou o livre-arbítrio. Nosso orçamento passou a ser neoliberal no mais estrito sentido do termo. Basta ler os autores neoliberais para saber que, para eles, as esferas financeiras do Estado precisam ser insuladas de qualquer interferência da soberania popular. Rigorosamente, a partir da vigência da EC-95 o Brasil deixou de ser democracia e virou uma demarquia - o regime político sugerido nos escritos de Hayek que insula as áreas econômicas do Estado de interferência da vontade popular.
Em segundo lugar, Temer entregou a reforma trabalhista, a entrar em vigor no dia 11 de novembro, que desconstitucionalizou de uma canetada todo o secular processo histórico de luta de classes, e subsequente constitucionalização dos direitos do trabalho no Brasil.
Tudo isso vem transformando o Brasil de um país dependente que lutava com esforço para subir de degrau em um país em acelerado processo de reneocolonização. Neste sentido, a melhor expressão para definir tanto o golpe do Impeachment como trabalho sujo de Temer seja a “doutrina de choque”, de Naomi Klein.
Todo choque gera perplexidade. O sentimento se espalha como rastilho de pólvora entre muitos militantes perplexos nas redes sociais. Como nunca, o momento requisita de certa frieza analítica.
Embora seja uma ficção destópica cativante, é impossível o Brasil retornar aos tempos do “fazendão” da República Velha. Sem dúvida, é uma das linhas de tendência da atualidade. Mas ela precisa ser confrontada a outras linhas de tendência. A demografia necessariamente produz efeitos na política. Antes de 1930, habitava o pobre Brasil agrário 20 milhões de pessoas; hoje, somamos 207 milhões, essencialmente população urbana. Nem gastos bilionários em segurança pública e um sistema político impermeável a influência popular conseguiriam segurar o país.
Gramsci sugeriu genialmente, nos tempos nem tão distantes do fordismo, sem determinismos, o processo de ocidentalização do oriente político. Caso o Brasil voltasse a ser um "fazendão", a sociedade civil deixaria de ser densa e voltaria a ser gelatinosa. Estaríamos diante de um inédito processo de "reorientalização" (morfológica e não geográfica, é claro). Sem possibilidade.
Nos cálculos políticos dos últimos dias de Temer, o resultado de ontem (251 a 233, mais apertado que o da primeira denúncia) praticamente elimina a possibilidade de o governo continuar votando reformas no congresso, em especial a da previdência, por meio de emendas constitucionais. Em definitivo, até mais que um “pato manco”, Temer vai se tornando um zumbi, mas longe haver sido batido o último prego do caixão. Talvez o regime desça mais baixo e involua rumo a uma sarneyzação mais decadente - o regime dos sonhos do centrão.
A agenda de reneocolonização irá o mais longe que a correlação de forças permitir. O governo deve continuar implementando celeremente a pinguela da “… Ponte…” através de portarias, decretos, desonerações e leilões. Devido à complexidade dos temas, quando mesmo ativistas políticos demonstram desinformação e relativa dificuldade de açambarcar tantos domínios, imaginem o conjunto da população. Por isso, deveríamos eleger algumas prioridades. As duas principais, entre outras, são o pré-sal e as privatizações.
Em outra pinça, é preciso dar um salto de qualidade no debate programático. Os anos recentes têm sido de transformações radicais. Pode haver muita ilusão, mas as linhas de força dominantes no Brasil e de resto no mundo não permitem o espaço de um projeto baseado na conciliação de classes, ao menos nos moldes relativamente pacíficos e tácitos de antes do turbilhão. Nossas reservas são o povo e os trabalhadores, os que estão sofrendo na pele os efeitos da reneocolonização e da superexploração, que viremos a conquistar através de um duro trabalho de conscientização e organização.
Jaldes Meneses
Após a votação de ontem da Câmara dos Deputados, liberando o presidente de responder no STF pelos crimes provados de organização criminosa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, começa hoje o primeiro dos últimos dias do governo Temer. O principal evento deverá ser as eleições de 2018, que promete emoções, sangue e suor. Mas ainda resta um rescaldo de tempo até o lançamento de chapas e convenções, entre abril e agosto. Como o tempo será preenchido até lá?
Antes de tudo, vale a pena observar que os tumultuados tempos recentes concentraram rápidas e decisivas transformações. O Brasil não será o mesmo depois da passagem de Temer. Ungindo por um Impeachment ilegal, o programa de governo “Uma ponte para o futuro” virou tábua de sobrevivência, a que Temer se apegou entregando a mercadoria que prometeu ao tal de mercado. Era isso ou a cadeia.
Entre as duas mais importantes mercadorias entregou primeiramente a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). A EC-95, cujo conteúdo deletério é subestimado até hoje, transforma em cláusula da constituição, feito uma súmula dogmática, a inviolabilidade da fatia das despesas financeiras no orçamento público, em detrimento das despesas primárias. Nem Deus teve tanto poder, já que nos deixou o livre-arbítrio. Nosso orçamento passou a ser neoliberal no mais estrito sentido do termo. Basta ler os autores neoliberais para saber que, para eles, as esferas financeiras do Estado precisam ser insuladas de qualquer interferência da soberania popular. Rigorosamente, a partir da vigência da EC-95 o Brasil deixou de ser democracia e virou uma demarquia - o regime político sugerido nos escritos de Hayek que insula as áreas econômicas do Estado de interferência da vontade popular.
Em segundo lugar, Temer entregou a reforma trabalhista, a entrar em vigor no dia 11 de novembro, que desconstitucionalizou de uma canetada todo o secular processo histórico de luta de classes, e subsequente constitucionalização dos direitos do trabalho no Brasil.
Tudo isso vem transformando o Brasil de um país dependente que lutava com esforço para subir de degrau em um país em acelerado processo de reneocolonização. Neste sentido, a melhor expressão para definir tanto o golpe do Impeachment como trabalho sujo de Temer seja a “doutrina de choque”, de Naomi Klein.
Todo choque gera perplexidade. O sentimento se espalha como rastilho de pólvora entre muitos militantes perplexos nas redes sociais. Como nunca, o momento requisita de certa frieza analítica.
Embora seja uma ficção destópica cativante, é impossível o Brasil retornar aos tempos do “fazendão” da República Velha. Sem dúvida, é uma das linhas de tendência da atualidade. Mas ela precisa ser confrontada a outras linhas de tendência. A demografia necessariamente produz efeitos na política. Antes de 1930, habitava o pobre Brasil agrário 20 milhões de pessoas; hoje, somamos 207 milhões, essencialmente população urbana. Nem gastos bilionários em segurança pública e um sistema político impermeável a influência popular conseguiriam segurar o país.
Gramsci sugeriu genialmente, nos tempos nem tão distantes do fordismo, sem determinismos, o processo de ocidentalização do oriente político. Caso o Brasil voltasse a ser um "fazendão", a sociedade civil deixaria de ser densa e voltaria a ser gelatinosa. Estaríamos diante de um inédito processo de "reorientalização" (morfológica e não geográfica, é claro). Sem possibilidade.
Nos cálculos políticos dos últimos dias de Temer, o resultado de ontem (251 a 233, mais apertado que o da primeira denúncia) praticamente elimina a possibilidade de o governo continuar votando reformas no congresso, em especial a da previdência, por meio de emendas constitucionais. Em definitivo, até mais que um “pato manco”, Temer vai se tornando um zumbi, mas longe haver sido batido o último prego do caixão. Talvez o regime desça mais baixo e involua rumo a uma sarneyzação mais decadente - o regime dos sonhos do centrão.
A agenda de reneocolonização irá o mais longe que a correlação de forças permitir. O governo deve continuar implementando celeremente a pinguela da “… Ponte…” através de portarias, decretos, desonerações e leilões. Devido à complexidade dos temas, quando mesmo ativistas políticos demonstram desinformação e relativa dificuldade de açambarcar tantos domínios, imaginem o conjunto da população. Por isso, deveríamos eleger algumas prioridades. As duas principais, entre outras, são o pré-sal e as privatizações.
Em outra pinça, é preciso dar um salto de qualidade no debate programático. Os anos recentes têm sido de transformações radicais. Pode haver muita ilusão, mas as linhas de força dominantes no Brasil e de resto no mundo não permitem o espaço de um projeto baseado na conciliação de classes, ao menos nos moldes relativamente pacíficos e tácitos de antes do turbilhão. Nossas reservas são o povo e os trabalhadores, os que estão sofrendo na pele os efeitos da reneocolonização e da superexploração, que viremos a conquistar através de um duro trabalho de conscientização e organização.
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