Excesso de zelo |
Luiz Fernando Zanin Oricchio
Com o Nobel de Literatura para Kasuo Ishiguro, britânico nascido no Japão, falou-se muito em Os Vestígios do Dia (1993), talvez sua obra mais conhecida.
O título evoca Freud. Naquele que é considerado seu livro mais importante, Freud dizia que os sonhos eram realizações de desejo e seu “texto” era construído com ideias esparsas da vida de vigília. “Vestígios do dia” é a expressão empregada na Interpretação dos Sonhos (1900). Estes restos entram no sonho como fragmentos, descontextualizados desprovidos de significado, e funcionam como materiais de construção de outra coisa, em outro nível psíquico.
Ex-psicanalista, o título me intrigou quando conheci a história escrita por Ishiguro através da sua adaptação para o cinema por James Ivory. Stevens (Anthony Hopkins) é um mordomo britânico clássico, com tamanha aplicação e espírito profissional que sequer nota a vida pulsar ao seu redor. Nem mesmo repara na doce presença de uma governanta (Emma Thompson) por ele interessada.
Stevens passa a vida como sonâmbulo. Sonhando acordado, fervente em sua devoção ao patrão, numa trama que se desenvolve ao longo do tempo e passa pela 2ª Guerra Mundial. Joga suas impressões num diário e de suas linhas se depreende não o inconformismo com o destino, mas uma cabal aceitação de que tudo foi como deveria ser.
Em geral acho as obras de Ivory certinhas demais. No limite do acadêmico. Mas este filme me tocou. Sem que pudesse descrever muito bem, acho que Os Vestígios do Dia passa uma certa estranheza fértil nas entrelinhas. Talvez se refira ao incômodo causado por essa alienação fundamental do mordomo fiel, que perde a vida por excesso de zelo.
A recombinação desses elementos forja uma fina camada onírica que torna o filme mais interessante do que poderia ser. Porque reverbera algo em nosso inconsciente. E nos serve de alerta para um perigo que nem sempre reconhecemos a tempo e às vezes nos faz perder a vida.
Estadão
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