Historiador Daniel Araao Reis defende que os conflitos internos tiveram papel fundamental na ascensão do autoritarismo na União Soviética
Leonardo Cazes
RIO - Cem anos depois, a Revolução Russa continua a suscitar debates apaixonados. Nos ensaios do livro “A revolução que mudou o mundo” (Companhia das Letras), o historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis procura construir um mosaico de um período que vai de 1905, com a primeira grande crise do czarismo, até o fim das guerras civis, em 1921. Em entrevista ao GLOBO, ele defende que os conflitos internos tiveram papel fundamental na ascensão do autoritarismo na União Soviética e afirma buscar uma terceira via entre a historiografia liberal, que demoniza, e a historiografia comunista, que celebra a revolução.
A Revolução Russa é evento que desperta paixões. Como fazer dele um objeto de estudo, deixando de lado as disputas políticas?
Durante bastante tempo, os estudos foram muito polarizados. De um lado, a historiografia anglo-saxã de orientação liberal, cujo um dos líderes é Richard Pipes, muito crítica à União Soviética e ao socialismo de modo geral. Essa orientação superestima a importância do Partido Bolchevique, das ideias comunistas e dos seus líderes como sendo responsáveis por tudo de negativo que aconteceu no processo soviético. Essa corrente se apropriou do conceito de totalitarismo de Hannah Arendt, tornando-o uma chave a partir da qual tudo se explica: no Estado totalitário, partido e Estado se fundiram, o povo estava lobotomizado. O curioso, e de certo modo paradoxal, é que no polo oposto a historiografia soviética e comunista vai adotar o mesmo ângulo de análise, só que com os sinais contrários. Tudo é creditado ao partido, aos líderes, às ideias. A partir da década de 1960, começa a se estruturar uma outra historiografia.
E o que propôs esta nova historiografia?
Essa historiografia tem privilegiado o ângulo da história social. Trata-se de compreender a construção do Estado, do partido, de seus líderes, como uma expressão do desenvolvimento da sociedade, sem subestimar a autonomia relativa de cada um. Estive num evento em São Paulo e um historiador russo disse que era preciso “desbolchevizar” e “desleninizar” a Revolução Russa, estudar a revolução como um processo social e cultural. O Partido Bolchevique, em fevereiro de 1917, tinha 24 mil filiados. Em outubro, chegou a 400 mil filiados, mas o país tinha 160 milhões de habitantes. Em outubro, de cada 11 militantes, 10 tinham sido recrutados há meses. Não tinha como ser um partido monolítico. O estudo da trajetória do próprio Lênin em 1917 evidencia muitos zigue-zagues.
Você propõe uma periodização mais alargada do processo da Revolução Russa, com início em 1905. Por quê?
Em 1905, despontam quatro atores que reaparecerão com muita força em 1917: os operários; os camponeses; soldados e marinheiros; e, finalmente, as nações não-russas. Mais da metade da população do império não era russa. Além disso, o soviete, que em russo quer dizer conselho, é uma estrutura inventada em 1905. Eles eram uma organização flexível, ágil e protegia as lideranças populares da repressão. Além disso, a guerra russo-japonesa, que começou em 1904, teve papel decisivo. As camadas médias se mobilizaram intensamente, pressionando o tsarismo no sentido de uma abertura democrática. Mas essa agitação das elites esmoreceu muito rapidamente, quando o tsar proclamou algumas liberdades e convocou eleições para o parlamento. Toda essa memória estava presente em 1917.
Por que a queda do czarismo, em fevereiro de 1917, abriu um enorme vazio de poder na Rússia?
A autocracia russa se distingue muito dos Estados europeus porque estabelece com a sociedade uma relação direta de dominação. A relação do autocrata com a sociedade é de vassalagem. Não há instituições intermediárias. Quando o autocrata cai, abre-se um vazio imenso, ocupado pela multiplicação de poderes: sindicatos, sovietes, milícias, comitês de fábrica. O soviete de Petrogrado tinha prestígio, mas suas decisões só eram cumpridas quando os sovietes locais julgavam que correspondiam aos seus interesses. Havia mais de 900 sovietes. Uma rede de poderes se projetou na Rússia revolucionária. Por isso que se dizia que era a sociedade mais livre do mundo. No campo, formaram-se os comitês agrários, que realizaram o seu primeiro congresso em maio de 1917. Foi um tempo de democracia radical.
No livro, o senhor defende que os bolcheviques deram um golpe em outubro de 1917. Poderia explicar?
O Partido Bolchevique decidiu realizar a insurreição contra o governo provisório na véspera do II Congresso dos Sovietes. O caráter golpista da insurreição é evidente, mas isso não é determinante para a revolução. Quando o congresso começa, aprovam-se decretos que atendem às demandas das maiorias. Todas as cidades aderiram. Os camponeses, quando realizaram os seus congressos, aceitaram o governo revolucionário. O Conselho dos Comissários do Povo (CCP) propõe consagrar, juridicamente, as invasões que os comitês agrários já vinham promovendo. É uma revolução social e democrática porque atendeu às amplas maiorias. Por isso questiono se outubro pode ser caracterizado como berço do socialismo soviético.
A origem do socialismo soviético, tal como o senhor propõe, estaria nas guerras?
O berço real do socialismo soviético são as guerras civis. Em outubro, os quatro grandes vetores da revolução — operários, soldados e marinheiros, camponeses e nações não russas — são atendidos. Durante as guerras civis, esses pactos são rompidos. O Exército deixou de ser permeado por comitês de soldados para voltar a ser hierarquizado. Os sovietes e os comitês agrários foram incorporados pelo Estado. É difícil pensar numa guerra com decisões democráticas. O conflito exige decisões rápidas. Mas é importante lembrar que essa guerra não foi só entre “brancos” (conservadores, apoiados pelas potências estrangeiras) e “vermelhos”. Houve uma guerra entre bolcheviques e não-marxistas, entre bolcheviques e nações não-russas, conflitos com os camponeses quando iniciaram as políticas de requisição forçada de alimentos. Os anarquistas logo denunciaram que aquilo não era socialismo, pois havia um nexo indissolúvel entre socialismo e democracia. Ao longo das guerras houve uma metamorfose que desembocou no socialismo autoritário soviético, que marcou toda experiência socialista do século XX.
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Globo
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