quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O Brasil da traição

Aldo Fornaziere

O que espanta no depoimento de Antônio Palocci ao juiz Moro não foi a traição que ele perpetrou contra Lula, mas o despudorado cinismo da traição - a total desfaçatez com que foi feita. O depoimento foi, praticamente, uma delação. Nestes termos, seguiu o padrão de outras delações. Todas revelam o apodrecimento do caráter moral da política brasileira e de boa parte dos políticos e de empresários que se relacionam com o mundo político e com o Estado.

​Palocci, a exemplo de tantos outros delatores, não revelou "verdades" a Moro como forma de arrependimento moral, como sinal de consciência penitente de alguém que havia cometido graves violações da lei, como alguém que vem a público confessar imperdoáveis pecados contra a sociedade, como alguém que sente uma dor moral insuportável e um sentimento angustiante de perda da honra pessoal. Nada disso está presente no depoimento de Palocci. O único objetivo do depoimento foi torpe: conseguir um benefício pessoal, buscando que lhe seja concedido o privilégio da delação premiada. Este tipo de pessoa está apta a alcançar a liberdade para continuar persistindo no crime, assim como Temer se habilitou pela traição a chegar à presidência da República para continuar na senda criminosa.




Palocci nunca teve senso de grandeza, de responsabilidade e de honra, pois se o tivesse, teria se preparado e se preservado para ser presidente do Brasil, ao invés de perder a sua dignidade política com acusações falsas contra um pobre caseiro e com festas tipicamente brasilienses na casa em que morava. A Deusa Fortuna lhe era benfeitora e a ocasião era propícia para que ele se tornasse presidente. No entanto, preferiu entregar-se às frivolidades da vida. Pessoas que têm essas oportunidades e as jogam ao vento não podem ser confiáveis.



Trata-se de um grave equívoco comparar Palocci ao prisioneiro político que, sob tortura, entrega companheiros. Ninguém tem o direito de julgar a conduta de um torturado, pois somente aqueles que foram torturados sabem os seus limites físicos e psicológicos. Claro que a perspectiva de passar alguns anos na cadeia é algo profundamente desagradável. Mas não constitui o limite da insuportabilidade.



A traição pode ser uma infração moral, uma infração penal ou ambas as coisas. No caso, Palocci cometeu uma infração moral, pois o costume, a moral comum, tem a fidelidade como um valor. A traição, nesse sentido, é um crime imperdoável, uma coisa vil, abominável, uma ação de homens mal-aventurados. A conduta de Palocci ante o juiz foi abjeta: subserviência ao novo senhor e frieza com Lula que o honrou. Frieza também ao criar frases de efeito para produzir maior dano ao ex-presidente.



A traição é um crime imperdoável porque é, antes de tudo, um crime do coração. A fidelidade abriga a fé, a crença no caráter confiável das pessoas. A traição como infidelidade é a ruptura da fé, do pacto tácito ou explicito que existe entre duas pessoas ou um grupo de pessoas, os membros de empresa, de uma comunidade, de um partido, de uma nação.



É um crime do coração porque fidelidade implica confiança e a confiança original da experiência de vida e de mundo que se estabelece é a confiança entre a mãe e a criança, é uma confiança de sentimentos, da sensibilidade, do coração. Esta confiança original se prolonga na vida através da família, das amizades, dos agrupamentos associativos ou empresariais de diversos tipos, da comunidade, da sociedade, da política, dos partidos e do Estado. Sem confiança os seres humanos ficam sós diante do mundo, mergulhados em sua avassaladora solidão. Trair significa estilhaçar tudo isto.



A delação premiada sem provas, tal como vem sendo desenvolvida no Brasil, tornou-se um aterrador pedestal onde sobem os oportunistas, os cínicos, os hipócritas os chefes de organizações criminosas. Sim, porque alguns chefes das maiores organizações criminosas - os Odebrecht e os Batistas - são delatores.



Traição e inconfiabilidade



Se é verdade que a delação premiada bem conduzida pode beneficiar a sociedade ao se descobrir crimes contra o Estado e contra o interesse público, quando mal feita, ela desestrutura ainda mais a sociedade, reforçando o clima de inconfiabilidade, de traições e de vale tudo, derrogando os valores da solidariedade, da igualdade, da justiça, do civismo e de comunidade de pertencimento. Não por acaso, o Brasil ostenta o pior índice de confiança interpessoal em toda a América Latina, com apenas 3%. De acordo com o Instituto Latinobarometro, que faz pesquisas sobre a democracia na região há mais de 20 anos, o Brasil ocupa este lugar faz tempo.



Não por acaso, o Brasil lidera a queda no apoio ao regime democrático na medição do ano passado, passando de 52% em 2015, para 32% em 2016. Isto é um prenúncio do cenário eleitoral tormentoso que vem se desenhando no horizonte assustador de 2018.



A cultura da traição é como uma lepra que vai destruindo das carnes da sociedade, minando o capital social. É uma doença moral e espiritual que destrói a sociabilidade. Não resta dúvida de que a confiança interpessoal é uma componente fundamental para o vigor do associativismo, para o desenvolvimento do civismo político e participação popular, para o fortalecimento das formas organizativas da sociedade civil e para a superação das atomizações e divisões sociais e políticas que enfraquecem o povo.



No Brasil de Temer e de Palocci, dos Odebrecht e dos Batistas, há uma sistemática ofensiva em favor dos valores da infidelidade, da traição e da vilania. Há uma violenta ofensiva contra os valores do civismo, da unidade e da solidariedade social. Esta é uma das formas astuciosas para manter a hegemonia de uma elite predadora, que usa o Estado para manter seus privilégios e para assaltar o povo pela corrupção, pela carência de direitos e pela extorsão tributária.



Um país sem confiança interpessoal, social e política, um país que se move pela infidelidade e pela traição, é um país sem futuro. Para que o país prospere e se desenvolva, para que o país alcance elevados níveis de bem estar social, é preciso que haja confiança nas instituições e nas leis, nos partidos e nos líderes políticos. É preciso que haja sentimentos de honestidade, de solidariedade, de confiabilidade e expectativa de normas e valores comuns, compartilhados pela sociedade. O pouco que o Brasil tinha avançado neste rumo da boa fé, da autoconfiança em si mesmo, sofreu um duro golpe com o golpe político perpetrado pelo grupo de criminosos políticos que se instalou no poder.



Na medida em que a traição e a infidelidade foram erigidas em práticas contumazes, os brasileiros se tornaram uma multidão de estranhos entre si, cada um desconfiando do outro. O crescimento da violência criminal é a forma exasperada da quebra da confiança e da boa fé que se desenvolveu a partir do meio político. Hoje o que se tem é um Estado desorganizado e uma sociedade estraçalhada. Aqueles que dizem que a democracia está funcionando no Brasil comentem um crime de lesa-pátria. Se é verdade que a lei nunca funcionou bem e que o Judiciário sempre foi tendencioso contra os pobres, os negros, os índios e as mulheres, agora, com seu terrível martelo, ajudou a golpear a Constituição, se omitiu e cometeu crimes também. Não por acaso, apenas 9% dos brasileiros acreditam que o governo governa para todo o povo.



Somente o povo nas ruas, liderado por líderes autênticos e corajosos, terá condições de construir laços de unidade, de confiança, de solidariedade e de justiça peregrinando rumo a um futuro mais promissor. Aconteça o que acontecer com Lula, enquanto a sua liberdade não for cerceada, terá que peregrinar junto com este povo, confiando nele, pois ele é a fortaleza dos líderes verdadeiros. Os demais líderes progressistas também devem caminhar nesta peregrinação da unidade e da esperança. Os Palocci da vida, por terem cometido delitos imperdoáveis, devem ser esquecidos, devem ser condenados à damnatio memoreae.



Brasil 247

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