terça-feira, 12 de setembro de 2017

A precisão no despenhadeiro ( Terceirização )

Precisão e equilíbrio são valores essenciais à prática jornalística. Aplicar esses valores, no entanto, não é tarefa das mais fáceis. É arriscado imaginar que, expressa de maneira subjetiva, uma informação vá chegar ao leitor como algo objetivo.

Nesta semana, manchete da Folha sobre terceirização de contratos de trabalho tornou-se campeã de queixa dos leitores e de imprecações nas redes sociais.


Estudo que embasou a manchete apontava que, entre 2007 e 2014, empregados que passaram a ser registrados por empresa que intermedeia serviços, em vez de serem empregados diretos, tiveram uma perda salarial de 2,3%. Em uma de seis ocupações tipicamente terceirizáveis, operador de telemarketing, a queda chegou a 8,8%. Em apenas uma delas, segurança/vigilância, foi registrada alta, de 4,94%.



A partir dessas informações, publicadas em revista da USP, a Folha estampou em manchete no domingo passado (3/9): "Terceirizar não derruba salário, aponta estudo". Logo abaixo, subtítulo explicava: "Trabalhador perde em média 2,3% da remuneração ao deixar contrato direto".



O meu estranhamento foi imediato. Era uma incongruência óbvia e por demais visível. Como afirmar que "não derruba" se o número apontava para uma queda?



A reação imediata dos leitores ecoou nas redes sociais, no site do jornal e na caixa de entrada de e-mails da ombudsman. O Painel do Leitor publicou várias cartas comentando o tema; a maioria, contrária.



As críticas dos leitores não foram poucas: a manchete foi definida como "enganosa", "um desserviço por induzir o leitor ao erro". Houve quem apontasse que a reportagem tratava do tema de forma "enviesada e perigosa". Alguns ainda ironizaram: "Pode ser que para os abastados pesquisadores, 5% ou 8% não signifiquem muito, mas para o trabalhador real é muito".



Os autores do estudo -Eduardo Zylberstajn (EESP/FGV e Fipe), Guilherme Stein (Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser) e Hélio Zylberstajn (FEA/USP)- analisaram dados de mais de 13 milhões de trabalhadores brasileiros e selecionaram seis ocupações que consideram tipicamente terceirizáveis: manutenção de equipamentos, vigilância, tecnologia da informação, limpeza, pesquisa e desenvolvimento e telemarketing.



Eduardo Zylberstajn afirma na reportagem que "o estudo desmonta o mito de que a terceirização precariza o salário". Segundo ele, a inferência tem origem em comparações equivocadas entre funções, empresas e pessoas diferentes. A reportagem cita como exemplo um artigo da CUT (Central Única dos Trabalhadores) que concluiu que terceirizados ganham 24,7% menos do que outros empregados.



Perguntei a Zylberstajn se considerava o título correto. Ele disse que o título não o surpreendeu, porque fazia sentido entre os que estão inteirados sobre o debate da terceirização. Os estudos até então conhecidos apontavam redução de 25%. Seu levantamento detectou uma queda muito menor.



Na avaliação do editor de Mercado, Ricardo Balthazar, e de Ana Estela de Sousa Pinto, que assina a reportagem, a redução menor do que a propalada justifica tanto o título como o lide do texto. "O estudo aponta uma perda de 2,3% para trabalhadores terceirizados, e a reportagem mostra que essa queda é muito menor do que a calculada por outros estudos feitos anteriormente, com metodologias imprecisas e duvidosas. É isso o que sustenta a conclusão expressa pelo título da reportagem", diz Balthazar.



"Derrubar é queda forte, como disparar é alta forte. Considero o verbo bem usado", justifica Ana Estela. Balthazar concorda: "Uma queda de 24,7% da renda, como sugeriu estudo anterior sobre o assunto, citado pela reportagem, justificaria o uso do verbo 'derrubar'. Uma queda de 2,3% não." Para a repórter, "o valor jornalístico do estudo é mostrar, com rigor técnico, que o senso comum estava errado. E o título da Folha reflete isso corretamente".



Por mais que veja razoabilidade nas ponderações, identifico dois problemas: 1) a construção da reportagem tem o objetivo de contestar o senso comum, daí a negativa do título. Mas o questionamento a estudos anteriores aparece apenas superficialmente no meio do texto, citando apenas um deles; 2) a elaboração da manchete abre mão da precisão e prejudica a clareza do entendimento.



Ao optar por "não derruba", o jornal recorre a forma de título com negativa, não recomendada pelo Manual da Redação. A escolha do verbo não foi feliz. Se tomarmos "derrubar" simplesmente como fazer cair (derrubar árvores, derrubar governo, derrubar uma liminar), o título está errado. Para aceitá-lo como correto seria necessário entender que a terceirização não lança salários despenhadeiro abaixo.



A questão não deve ser reduzida à semântica. A reforma trabalhista é tema que separa capital do trabalho e tem forte viés ideológico. Na questão do equilíbrio, incomoda que a reportagem se detenha em um único estudo, de forma não comparativa.



O jornal erra ao pressupor que o leitor tenha o mesmo conhecimento do tema que os jornalistas. A recusa em reconhecer que o título era, no mínimo, impreciso reforçou a impressão de leitores de que a Folha divulgara o estudo por estar afinada a ele.



Folha SP


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