segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Delação Premiada: mercadoria do Estado Pós-Democrático

Rubens Casara

Para compreender criticamente a “colaboração premiada” é necessário contextualizar esse instituto. Para além da previsão legal e da importação acrítica desse instituto, só é possível perceber o funcionamento concreto da colaboração premiada à luz da razão neoliberal como nova razão do mundo, na linha defendida por Christian Laval, Pierre Dardot e Antonie Garapon.


Tudo hoje é tratado como mercadoria. Todos os valores passaram a ser tratados no registro das mercadorias. A “colaboração premiada” é uma mercadoria. Aliás, o próprio nome “colaboração premiada” é para “vender” como algo positivo a delação, que do ponto de vista histórico, sempre foi uma negatividade.



A delação é chamada de colaboração para disfarçar o desvalor ético inerente a todo e qualquer delator. Não poucos autores percebem que, com a delação premiada, o Estado perde a superioridade ética que deveria o distinguir do criminoso.



A liberdade e a verdade, valores da jurisdição penal democrática, passaram a ser tratadas como mercadorias. Os direitos e garantias fundamentais, que na concepção de Luigi Ferrajoli, compõem o conteúdo substancial da democracia, também passaram a ser tratadas como mercadorias.



E o que caracteriza a mercadoria? Mais do que a existência de um valor de uso e de um valor de troca, é a possibilidade de ser negociada, substituída e, quando se torna obsoleta, descartada.



No momento em que o neoliberalismo foi alçado à condição de “nova razão de mundo”, os valores e princípios que condicionavam a atuação dos sujeitos, tanto na vida privada quanto na vida pública tornaram-se negociáveis e, portanto, descartáveis.



Pensem na chamada “operação Lava Jato”. Não se trata de um processo. Hoje, existem vários processos da grife “Lava Jato”. Mais do que um complexo de casos penais, a Lava Jato hoje é um grande produto, explorado à exaustão pelos meios de comunicação de massa.



Vale insistir: a Lava Jato não é um caso penal. Não é uma imputação submetida ao devido processo legal. No que se chama de “Lava Jato” existem diversos casos penais, em diversos juízos, alguns que seguem o devido processo legal, outros que apresentam atipicidades. Impossível tratar todos os casos penais que recebem a etiqueta de Lava Jato como se fossem um só.



Agora, à luz da razão neoliberal, a Operação Lava Jato não passa de um produto, de uma mercadoria. De uma mercadoria espetacular. Lembrando que em meio à sociedade do espetáculo, tão bem descrita por Guy Debord, a dimensão de garantia do Processo Penal liberal cede lugar à dimensão de entretenimento.



O desejo de democracia, ligado ao respeito aos direitos e garantias fundamentais, é substituído pelo desejo de audiência. No caso brasileiro, uma audiência em relação a qual não foi possível construir uma cultura democrática.



A rigor, no neoliberalismo desaparece o sujeito. O subjectum, aquele que depende e necessita se submeter a outro (e o primeiro outro é a mãe que alimente o ser frágil e impotente), passa a acreditar que não necessita do outro, que se basta e que sempre se bastou (o discurso da meritocracia é uma variante desse fenômeno).



No plano imaginário, o sujeito transforma-se em um projeto empresarial. Em apertada síntese, cada um passa a se perceber como um empresário em luta permanente com os outros, tidos como adversários empresariais. Desaparece o diálogo, necessário à construção de vínculos, e, com ele, a possibilidade de um projeto coletivo ou mesmo a consciência da dimensão de classe.



A razão neoliberal levou à superação do Estado Democrático de Direito. Foi a razão neoliberal, ao buscar o lucro ilimitado, que levou à percepção dos direitos e garantias fundamentais como obstáculos à eficiência do Estado e do Mercado.



No Estado Pós-Democrático, desaparece a dimensão substancial da democracia (e mesmo a regra da maioria torna-se descartável). Se o Estado Democrático de Direito se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder, de qualquer poder, no Estado Pós-Democrático, em que o único objetivo é o aumento do Capital, inexistem limites rígidos ao exercício do poder. Mas, não é só. No Estado Pós-Democrático, que surge em atenção à razão neoliberal, o poder político cada vez mais se identifica com o poder econômico.



O exercício concreto do poder passa a se manifestar ora na forma de poder repressivo, com uso constante da violência de um terceiro necessária à contenção e exclusão daqueles que não interessam ao projeto neoliberal, ora na forma de “psicopoder” (Byung-Chul Han), que se manifeste sem a necessidade do exercício de um poder externo, de forma silenciosa e sutil a penetrar no psiquismo. É o psicopoder que faz com que o indivíduo, que se imagina como um empresário (e, portanto, como um órgão do Mercado, detentor imaginário de parte do poder político e do poder econômico), se submeta, sem perceber, ao poder econômico.



Os indivíduos submetidos ao psicopoder atuam de maneira voluntária, aderem ao projeto de dominação dos titulares do poder econômico sem perceber que também são explorados. São levados a acreditar na eficiência economicista e não na efetividade adequada à Constituição. A delação premiada é um instrumento que busca legitimidade nessa lógica eficientista, que não reconhece limites éticos ou jurídicos aos meios que buscam determinados fins adequados (sucesso econômico) ao projeto neoliberal.



No neoliberalismo, a parcela que se imagina livre do controle penal e da opressão de classe, na realidade, está submetida, vinte e quatro horas por dia, ao autocontrole e à autoexploração voltados aos interesses dos detentores do poder econômico.



Assim, mesmo nos bairros mais pobres das cidades, os indivíduos consideram o Estado um inimigo de seus projetos empresariais, valorizam a meritocracia e desconsideram a dimensão estrutural da crise ética (acreditam, por exemplo, que a “corrupção” é um problema relacionado apenas ao mau comportamento individual).



Os efeitos da razão neoliberal são trágicos onde quer que se façam presentes. Pense-se, por exemplo, no Sistema de Justiça Criminal, que hoje se concretiza através de processos penais que abandonaram os valores “liberdade” e “verdade”, inerentes à jurisdição penal democrática.



Liberdade e verdade, na pós-democracia, foram substituídos pelos valores “punição” e “consenso”. Consenso que, na delação premiada, se dá em torno de uma informação que muitas vezes não guarda relação com a verdade.



A razão neoliberal constrói uma visão de mundo que reduz as complexidades e que aposta em construções discursivas vendidas como positividades (pós-verdade). A realidade, complexa, é formada tanto por positividades quanto por negatividades. A informação a ser negociada, ao contrário, é pura positividade, é aquilo que se quer ouvir.



A liberdade, em especial daqueles que incomodam o funcionamento do Mercado e a lógica do poder econômico (pessoas sem poder de compra ou adversários políticos dos detentores do poder), pervertida pela visão neoliberal, passa a ser vista como uma negatividade, algo de ruim (a eventual absolvição de um réu acaba “vendida” como sinônimo de impunidade: “bandidolatria” para se usar uma expressão, típica do pensamento simplificador da moda), enquanto a prisão e a exclusão/eliminação de sujeitos (não-empresários) como uma ação positiva do Estado.



A verdade, sempre complexa e parcial, sempre positividade e negatividade em relação dialética, é abandonada na jurisdição neoliberal. A impossibilidade da descoberta da “verdade”, também vista como uma negatividade, fez com que esse valor acabasse substituído pelo valor “informação”.



A informação, sempre uma positividade que tem valor de troca e, ao mesmo tempo, pode ser descartada, revela-se mais adequada ao regime das mercadorias próprio da razão neoliberal. Não por acaso, nas “delações premiadas”, as informações selecionadas a partir de critérios subjetivos (não raro, condicionados por perversões inquisitoriais e pelos desejos de punir típicos de sociedades inseridos em uma tradição autoritária) dos agentes encarregados da persecução penal, são mais importantes do que a descoberta da verdade.



A descoberta da verdade torna-se acidental (a verdade deixa de ser uma meta, ou melhor, desaparece o objetivo de se aproximar da verdade no processo penal). Por “verdade” (poder-se-ia dizer aqui “pós-verdade”) passa a ser entendida a confirmação discursiva da hipótese acusatória.



Na realidade, a informação rara (a “raridade” é uma qualidade que se constrói a partir da relação oferta-procura), entendida como aquela que comprova a hipótese acusatória, revela-se a de maior valor, uma mina de ouro tanto para os acusadores quanto para o acusado que quer fazer jus a uma compensação (antiética) pelas declarações prestadas.



A informação tornou-se o objeto de uma declaração despida de qualquer complexidade inerente aos acontecimentos naturalísticos. Mais importante do que retratar a verdade, a informação deve constituir uma positividade, isto é, aos olhos dos agentes da persecução penal e do juiz, confirmar a hipótese acusatória e permitir a imposição de uma pena, “apresentada” também como uma positividade.



No procedimento “probatório”, o que importa para os atores estatais tomados pela razão neoliberal é a positividade consistente em confirmar a hipótese acusatória. E, não raro, a hipótese acusatória não passa de uma certeza delirante do acusador. Se a cultura inquisitorial leva ao “primado da hipótese sobre o fato”, a informação obtida na delação, se for ao encontro da certeza delirante do julgador, torna-se extremamente valiosa (que o digam alguns famosos delatores da recente história brasileira).



A negatividade própria da improcedência da pretensão punitiva deve ser evitada, mesmo que para tanto direitos e garantias fundamentais necessitem ser afastados e que informações que não interessem à construção discursiva da condenação precisem ser abandonadas.



Em resumo, a informação “obtida” nas delações premiadas, muitas vezes obtidas após prisões e coações ilegítimas, em um quadro no qual direitos e garantias fundamentais estão afastados em nome da lógica neoliberal, não guarda qualquer relação necessária com a verdade. Trata-se de um mero negócio no qual o valor “verdade” também é descartável enquanto o significante “verdade” passa a ser manipulado.



O quadro torna-se ainda mais grave diante da tradição autoritária em que a sociedade brasileira está lançada. Há, portanto, um problema hermenêutico.



Como se sabe, há uma diferença ontológica entre texto e norma. A norma é sempre produto do intérprete. O problema é que no Brasil o interprete está lançado em uma tradição autoritária que acaba por condicionar a criação das normas a partir do texto legal.




Tradição que fez com que o instituto da “delação premiada” fosse incorporado ao ordenamento brasileiro sem os controles epistêmicos presentes em outras legislações (por exemplo, vedação de delação de réu preso, admissão só para crimes excepcionais como o terrorismo, necessidade de advogados distintos para cada delator, limites temporais e legais bem definidos etc.).



Vale, ainda, analisar alguns problemas verificados na prática dos “acordos” de delação premiada. Um instrumento legal democrático deve reduzir ao máximo os espaços discricionários e impedir, na medida do possível, o arbítrio. A delação premiada, como ela é tratada no Brasil, não atende a esse fim.



No Brasil, que acredita no uso da força em detrimento do conhecimento para resolver os mais variados problemas, tem se admitido a delação de réu preso cautelarmente. Problemas:



Primeiro: a liberdade, ao menos desde Kant, não pode ser objeto de negociação.



Segundo: vício na formação da vontade do delator. A prisão, por evidente, compromete a voluntariedade necessária à celebração lícita de qualquer negócio, em especial de um negócio processual penal que possa resultar em restrição da liberdade. Há, inegavelmente, um componente de chantagem que afasta a legitimidade do acordo.



Terceiro: se o “delator” está preso cautelarmente, ao menos nas democracias, significa que a liberdade dele gera risco processual, ou seja, que existem dados concretos de que ele fez algo que coloca em risco a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal. Esse indivíduo que não pode ficar em liberdade (e, nas democracias, a liberdade é a regra) no curso do processo vai fazer jus a um benefício (sempre uma exceção)? Soa absurdo.



Outra questão: a delação de preso já condenado. Aqui também se faz presente o componente de chantagem já mencionado. A voluntariedade está ainda mais comprometida. Admitir delação de réu já condenado significa permitir que alguns juízes apliquem penas desproporcionais como estratégia de coação para produzir delações.



Mais uma: o valor probatório da delação. Há quem diga, e há um voto do Min. Lewandovsky nesse sentido, que a delação premiada não é “prova”, mas “fonte de prova”, um caminho a ser seguido na busca de provas. Mas, não é isso que a lei diz. Um dos parágrafos do art. 4º. da Lei 12.850/13 estabelece que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”. Ou seja, a delação é tida pelo legislador como meio de prova, as declarações são provas. Se o teor das delações for considerado “prova”, tem-se que admitir que o Estado pode “comprar” uma prova. Pensem o seguinte: o réu pode oferecer vantagens a uma testemunha para ela falar, ainda que seja a verdade? Podemos negociar provas?



Questão conexa com a última: o Estado pode exigir do Delator que produza provas que comprovem o conteúdo da sua delação? Isso violaria a dimensão probatória da presunção de inocência? Ou a presunção de inocência está suspensa (relativizada/flexibilizada, segundo a dicção neoliberal) para o delator?



Ainda sobre o valor probatório do conteúdo da delação: uma outra prova oral, vale imaginar a delação de um outro “agente colaborador”, é suficiente para justificar uma condenação, já que não existiria “apenas as declarações de um agente colaborador”? Isso para não se falar da evidente violação ao princípio da legalidade estrita em diversos acordos que estão a ser celebrados em todo o Brasil.



Mas, o que fazer em um mundo no qual desapareceram os valores (e os princípios democráticos)? Como agir em um mundo no qual tudo é tratado como mercadoria? Hoje, a reação possível encontra-se no campo ético-poético.



Para reagir ao subjetivismo criado pelo neoliberalismo, resta a redescoberta do outro e a poiesis: ações marcadas pelo reconhecimento e compromisso com o outro, visto em sua complexidade, como um ser com positividades e negatividades; e ações que criam o novo, a criatividade posta a serviço da produção de uma nova subjetividade, uma produção que não ecloda em si-mesmo, mas no outro e permita a identificação de um comum pelo qual vale a pena lutar.

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Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

* Matéria editada para atualizar biografia do autor, qua havia sido publicada erroneamente pelo Justificando.


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