Jurandir Freire Costa
É de Thomas Jefferson a frase: “Estremeço por meu país quando reflito que Deus é justo; que Sua justiça não pode dormir para sempre”. Deixemos de lado o tom religioso do apelo feito a Deus por um dos artífices da democracia ocidental. No discurso de Jefferson, o que salta à vista é o temor de que certas iniquidades atropelem a justiça mundana e exijam uma força transcendente para barrar sua expansão.
No Brasil dos últimos anos, a baixeza da vida política levou igualmente muitos de nós a “estremecer pelo futuro do País”. Entre os sinais da decadência, a corrupção é, certamente, um dos mais preocupantes. O que levou uma legião de parlamentares, servidores públicos, empresários, a se entregar à corrupção desabrida? O que aprender com isso?
Obviamente, não existem respostas simples para a questão. Penso, entretanto, que a corrupção no Brasil não se resume a atos pontuais de indivíduos inescrupulosos. A constância, a extensão e a intensidade com que vem sendo exercida tornou-a uma verdadeira “cultura” enxertada na vida social brasileira. Defino cultura da corrupção, neste contexto, como o conjunto de crenças e regras de ação internalizadas e praticadas por pessoas suficientemente poderosas para malversar, em benefício próprio, recursos pecuniários destinados ao bem público. Essa cultura é um modo de vida, e, como tal, apresenta aspectos típicos de sua forma de sobreviver e se autorreproduzir. Dos aspectos, três me parecem relevantes: a impunidade, o vício e a banalidade.
O primeiro, a impunidade, é o mais familiar. As oligarquias político-econômicas brasileiras, fiéis ao seu passado, continuaram a se apropriar do que é público sem nenhum traço de pudor ou receio de punição. Ao contrário, nos últimos tempos, refinaram a máquina de extorsão, pondo políticos imprestáveis e obsoletos a serviço do empresariado parasito-dependente do Estado e recrutando a ralé de lobistas e asseclas para otimizar o gerenciamento da corrupção.
A expectativa da impunidade da corrupção é, sem dúvida, escandalosa. Porém é apenas a ponta do iceberg da desigualdade. Um dos efeitos mais nefastos do abismo social brasileiro é o de impedir que os sujeitos possam empatizar mutuamente com o ponto de vista do outro. A insensibilidade social dos corruptos deriva em parte do fosso que os separa da maioria da população. Essa distância excessiva, aliás, “desumaniza” os dois polos da pirâmide social. Os que estão na base tendem a nutrir um forte ressentimento pelos que estão no topo, e os do topo, a racionalizar a injustiça com argumentos ainda mais ferozes: “se se deixam enganar, é porque são miseráveis, ignorantes, preguiçosos, aproveitadores, vagabundos, sem ambição etc”. Resultado: desespero dos que terminam por recorrer à violência como meio de afirmar suas existências sociais. No final, tudo parece confirmar o que disse um recém-eleito vereador do Rio: num país em que muitos lavam as privadas de poucos, muitos podem vir a morrer tragicamente por um pífio roubo de bicicleta ou de celular.
O segundo aspecto da cultura da corrupção é a metamorfose do crime em vício. Explicitando, a maior parte dos corruptos de grande porte era composta de parvenus ou de membros de grandes famílias oligárquicas. Embora de extrações sociais diversas, ao longo do tempo, os dois grupos assumiram uma atitude social comum, a exibição desenvolta dos sinais do crime. Os arrivistas adotaram o estilo de vida ostentatório, indicativo da ânsia por ingressarem no círculo dos “fortunate few”, e os “bem-nascidos”, a arrogância de quem manobra políticos como um titereiro manipula marionetes. Ambos conseguiram construir palcos sociais para seu ressentimento ou exibicionismo, e assim passaram pouco a pouco de criminosos a “excêntricos morais”.
Como mostrou Hannah Arendt, o desviante social rotulado de criminoso evita o olhar do público, exceto em lugares e circunstâncias definidos pela sociedade como domínio do Bas-Fond. No Brasil, o caso dos bicheiros é exemplar. Os desfiles das escolas de samba e outras atividades ligadas ao carnaval funcionam como momentos rituais em que o submundo tem permissão de vir à tona da superfície social. É o espaço do desrecalque; o espaço no qual os bem-pensantes flertam com a transgressão, com as baixas origens da “lei”, em suma, com o resto indomado da força pulsional.
No caso do desvio social tornado vício, a dinâmica é outra. A relação da “boa sociedade” com seu lúmpen passa da esfera do direito para a da “moral” individual. A atitude do criminoso é julgada por leis válidas para todos; a do vicioso, do sujeito com desvios morais, pela liberalidade ou severidade de quem julga. Os corruptos, assim, adquiriram passe livre para frequentar as “pessoas de bem”, desde que aceitassem ser uma curiosidade, um caso exótico de “dinheiro fora do lugar”. No mundo da opulência, o crime ganhou o status de vício e os suspeitos morais acabaram se tornando convidados ad hoc para a festa do poder. Afinal, não custa ser cortês ou indulgente com quem tem bolsos recheados. Foi o que foi feito e refeito. Num misto de alheamento, oportunismo e inconsequência, o “andar de cima” – com perdão da palavra! – virou um picadeiro para a exposição do espólio da corrupção.
Em razão disso, os corruptos foram se sentindo cada vez mais em casa, em suas práticas ilícitas. A realidade, por algum tempo, parecia curvar-se à onipotência fantasmagórica. A prepotência do senhoriato empresarial seguia impune e o arrivismo esbanjava soberba no desfile de joias principescas, restaurantes e hotéis de luxo, festas milionárias e resorts. Tudo ia no melhor dos mundos, com a cumplicidade dos caricatos “finzi continis” ao sul do equador. Até que veio o imprevisível e o desastre conhecido de todos.
Em retrospectiva, o auge da corrupção compulsiva parece ilustrar o que disse Léon Blum: “Há algo pior neste mundo que o abuso da força; é a complacência servil que essa força encontra quando é bem-sucedida, essa adulação obsequiosa que esquece o crime para bajular o sucesso”.
O terceiro aspecto, o da banalidade, é o lado mais sombrio da corrupção, porquanto implica a constatação da incapacidade do criminoso de avaliar a gravidade de seu crime. A expressão, como a utilizo, é uma extrapolação aproximada do célebre conceito de banalidade do Mal, criado por Hannah Arendt. Ao buscar entender a espantosa e apática frieza de Eichmann diante da monstruosidade que havia cometido, Arendt forjou essa noção. O mal, disse ela, é aterrador e aberrante em seus efeitos, mas pode ser torpe e mesquinho em suas motivações. Dito de outro modo, muitas vezes, um criminoso medíocre como Eichmann é incapaz de se dar conta do horror que pode causar a estupidez de suas decisões.
Fique claro, não se trata de comparar os crimes do nazismo com a corrupção brasileira, o que seria absurdo. A estupidez do corrupto não é a do nazista. A intenção é mostrar o que qualquer estupidez moral tem em comum: a inépcia do estúpido para pensar sobre o sentido ético do que faz. A banalidade da corrupção é detestável por contribuir para a perpetuação da miséria material de grande parte dos brasileiros, mas também por degradar o valor da política na vida cultural. Esse crime é, no limite, quase indesculpável. Por exemplo, a gestão empresarial da corrupção agia com a ligeireza de quem administra processos burocráticos de maximização de lucros. Uma das empresas chegou a criar um departamento de propina com protocolos padronizados para pagamento aos corruptos. Algo equivalente ocorreu com os apelidos dados aos políticos pelos funcionários de tais empresas. Além de degradantes, os apelidos mostram o deboche com que os políticos corruptos eram tratados pela burocracia empresarial. Pior ataque à política é difícil de conceber.
Pode-se retrucar que eles receberam o que mereciam: desprezo e humilhação. Acontece que, no exercício de seus mandatos, os políticos são a instância nobre da autoridade democrática. A estupidez dos corruptos impede-os de ver que não existe civilização sem hierarquia fundada no respeito à autoridade, e que a corrupção é um instrumento demolidor da credibilidade de qualquer governante. Com a desmoralização da política, a ordem de valores da sociedade moderna pode vir a pique e, com ela, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Para os corruptos, isso é idiotice hipócrita e pueril. Para outros, sem estes ideais não temos como imaginar um futuro melhor para nós e as novas gerações. Alinho-me aos últimos, e, citando livremente Kafka, diria: “a esperança nos foi dada em consideração aos desesperançados”. A estupidez passa, a esperança fica.
JURANDIR FREIRE COSTA, PSICANALISTA E ESCRITOR. AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE O RISCO DE CADA UM (GARAMOND)
Alias; Estadão
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