segunda-feira, 6 de julho de 2015

Michael Löwy: A crítica romântica de Charles Dickens ao capitalismo


Michael Löwy e Robert Sayre.*

Embora fosse completamente alheio às ideias socialistas, Charles Dickens era um dos autores favoritos de Marx. Seu romance Tempos difíceis, publicado em 1854, contém uma expressão excepcionalmente articulada da crítica romântica à sociedade industrial. Não faz uma homenagem tão explícita às formas pré-capitalistas, geralmente medievais, quanto a maioria dos românticos ingleses – como Burke, Coleridge, Cobbett, Walter Scott, Carlyle (a quem Tempos difíceis é dedicado), Ruskin e William Morris –, mas a referência aos valores morais do passado é um componente essencial da atmosfera criada por ele. Por um paradoxo que é apenas aparente, o refúgio desses valores aparece na forma de um circo, uma comunidade um tanto arcaica, mas autenticamente humana – na qual as pessoas ainda têm um “bom coração” e uma “atitude muito natural” – que se situa fora, e em franca oposição, à sociedade burguesa “normal”.



Em Tempos difíceis, o espírito frio e quantificador da era industrial é magnificamente personificado por um ideólogo utilitarista e membro do Parlamento, Mister Thomas Gradgrind (senhor “Triturador-sob-medida” é a tradução aproximada do nome…). Trata-se de um homem que tem “uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso” e está sempre “pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato”. Para Gradgrind, tudo no universo é “mera questão de números, um caso de simples aritmética”, e ele administra com mão de ferro a educação das crianças, segundo o princípio salutar de que “aquilo que não se podia expressar em números, ou demonstrar que era comprável no mercado mais barato e vendável no mais caro, não existia, e não deveria existir”. A filosofia de Gradgrind – a amarga e dura doutrina da economia política, do utilitarismo estrito e do laisser-faire clássico – era que:

tudo devesse ser pago. Não se podia, em hipótese alguma, dar nada a ninguém, ou oferecer ajuda gratuita. A gratidão deveria ser abolida, e as virtudes que dela brotavam deveriam deixar de existir. Cada minuto da existência humana, do nascimento até a morte, deveria ser uma barganha diante de um guichê.1

A esse retrato poderoso e evocador – quase um tipo ideal weberiano – do éthos capitalista, cujo triste triunfo se concretizará quando “o romance for expulso” da alma humana, Dickens contrapõe sua fé na vitalidade das “sensibilidades, afeições e fraquezas” da alma humana, “desafiando todos os cálculos do homem, e tão desconhecida da sua aritmética como é o seu Criador”. Ele acredita, e toda a trama de Tempos difíceis é um arrazoado apaixonado em favor dessa crença, que existem no coração dos indivíduos “essências sutis da humanidade que escaparão até da maior habilidade algébrica, até o dia em que o som da última trombeta fizer em pedaços até mesmo a álgebra”. Recusando-se a ceder à máquina-de-triturar-sob-medida, ele abraça valores irredutíveis aos números2.


“Louisa estava observando o fogo como nos velhos tempos.” Esta ilustração de Harry French incluída na edição brasileira de Tempos difíceis capta como o distanciamento sentido pela filha de Thomas Gradgrind em relação aos valores frios e calculistas transmitidos pelo pai se traduz em uma condição de solidão e alienação que remete melancolicamente ao passado.

Mas Tempos difíceis não tratam apenas da trituração da alma: o romance ilustra também como a modernidade expulsou da vida material dos indivíduos qualidades como beleza, cor e imaginação, reduzindo-a a uma rotina fastidiosa, cansativa e uniforme. A cidade industrial moderna, “Coketown”, é descrita por Dickens como “uma cidade de máquinas e chaminés altas, pelas quais se arrastavam perenes e intermináveis serpentes de fumaça que nunca se desenrolavam de todo”. Suas ruas eram semelhantes umas às outras, “onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior”3. O espaço e o tempo parecem ter perdido toda diversidade qualitativa e toda variedade cultural, tornando-se uma estrutura única, contínua, moldada pela atividade ininterrupta das máquinas.

Para a civilização industrial, as qualidades da natureza não existem: ela só leva em conta as quantidades de matéria-prima que pode extrair dela. Coketown é, em consequência, uma “feia cidadela, onde a Natureza era mantida firmemente do lado de fora pelas mesmas paredes de tijolos que mantinham os ares e os gases letais do lado de dentro”; suas altas chaminés, lançando “suas baforadas venenosas”, escondiam o céu e o sol, e este estava “eternamente em eclipse, através de uma barreira de vidro enfumaçado”. Os que ansiavam “tomar ar fresco” ou queriam ver uma paisagem verdejante, árvores, pássaros, um pouco de céu azul, tinham de percorrer alguns quilômetros pela ferrovia e caminhar pelos campos. Mas ainda assim não estavam em paz: poços abandonados, depois que todo o ferro ou todo o carvão haviam sido extraídos da terra, escondiam-se no mato, como armadilhas mortais.4

Dickens era um moderado favorável às reformas sociais, mas a crítica romântica da quantificação também pode assumir formas conservadoras e reacionárias: por exemplo, na defesa de Adam Müller e outras figuras do romantismo político da propriedade feudal tradicional, que supostamente representaria uma forma qualitativa de vida, contra a monetarização e a alienação mercantil da terra. Ou então no ódio antissemita contra o judeu identificado com o dinheiro, a usura e as finanças, e visto como considerado um fator de corrupção e subversão do Antigo Regime. O panfleto de Edmund Burke contra a Revolução Francesa é um exemplo clássico da utilização contrarrevolucionária do argumento romântico a respeito da quantificação moderna: denunciando a humilhação que os revolucionários de 1789 impuseram à rainha da França, ele exclama: “A idade do cavalheirismo passou – sucedeu-lhe a dos sofistas, dos economistas e dos calculadores; e a glória da Europa está extinta para sempre”5.

* Este artigo é um trecho do livro Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, de Michael Löwy e Robert Sayre, que integra a coleção “Marxismo e literatura” coordenada por Michael Löwy na Boitempo.


Blog da Boitempo


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