Seguindo a belíssima tradição cultural russa, Leviatã é um filme sore a história universal e atemporal do homem contra o Estado.
Léa Maria Aarão Reis
Leviatã (Leviathan, produção russa de 2014; duas horas e vinte minutos) é um filme majestoso. Um filme com grandeur como escreveu, com propriedade e grande entusiasmo, Peter Bradshaw, do jornal inglês The Guardian, um dos mais respeitáveis críticos de cinema em atividade. Indicado agora para o Oscar de Melhor filme de língua estrangeira (a festa é dia 22 deste mês), ele foi prêmio de Melhor Roteiro em Cannes, ano passado, e ganhou um Globo de Ouro em janeiro último. Em exibição nos cinemas das principais cidades do Brasil, vem fazendo carreira surpreendente, em pequenas salas, porém lotadas. É a primeira obra prima do ano cinematográfico. E a consagração é universal.
Sua apresentação coincide com a Mostra de 16 Filmes Russos Contemporâneos produzidos de vinte anos para cá, patrocinada pela Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro. Em seguida ela irá para São Paulo e Belo Horizonte. Os filmes foram realizados nos chamados “tempos da mudança”. Em especial, a famosa trilogia de Serguei Soloviev, Rosa Preta – Emblema da Tristeza, Rosa Vermelha/ Emblema do Amor e A Casa sobre o Céu Estrelado. Penitência, de Tengiz Abuladze, considerado marco da perestroika é outro. Garota Internacional, de Piotr Todorovskiy, um dos primeiros filmes a abordar o tema da prostituição na União Soviética. O assassino do Czar de Karen Shakhnazarov, mostra uma nova versão da história do assassinato da família imperial russa.
No caso de Leviatã, o seu diretor, Andrey Zvyagintsev, um siberiano de 51 anos, é um dos líderes da nova geração de cineastas do seu país que trazem na bagagem as tradições e as poderosas influências e contribuições do cinema, da literatura e da extraordinária cultura russa para o pensamento da humanidade. Seu filme é o corajoso mergulho nos abismos da alma. Ilumina os aspectos mais obscuros e inconfessáveis dela, e sua metáfora maior são as águas geladas e tenebrosas do Mar de Barents, no Círculo Polar do Ártico, extremo norte da Rússia, à beira do qual, na pequena cidade de Teriberka, a tragédia se desenha e se abate sobre um bom homem, Kolya - espoliado pelos semelhantes e abandonado por Deus -, ao som da glacial e impressionante trilha musical de Phillip Glass.
Neste fim de mundo, a beleza pode ser sombria. É o que mostra a belíssima fotografia de Mikhail Kirchman e o roteiro do próprio diretor e do seu parceiro, Oleg Negin.
O projeto do filme é ambicioso. Mas Zvyagintsev dá conta da sua dimensão – uma, metafísica; a outra, política. Presta um brilhante tributo a Dostoievsky, ao gênio cinematográfico de Andrei Tarkovsky, a Ingmar Bergman, Bresson, Kurosawa, mas, em especial, a Michelangelo Antonioni.
“Eu vi L’avventura e encontrei algo que não pode ser transmitido em palavras; desde então sou fiel a esse filme,” declarou o russo. O seu filme indaga: onde está o misericordioso Deus? É a pergunta que faz Kolya, o personagem central, ao padre ortodoxo submisso e quase indiferente ao sofrimento do homem. Esse Deus não vem enfrentar o Leviatã, um dos sete príncipes infernais, o demônio do quinto pecado – a Inveja – que surge no filme e no Livro de Jó?
A crítica à igreja ortodoxa é impiedosa. Foi contestada pelo alto clero russo: “O bispo que aparece no filme conversando com o prefeito corrupto parece chefe de gangue mafiosa!” se queixou um sacerdote ao assistir o filme.
Zvyagintsev conta a tragédia de um homem, na província de Murmansk, que tudo perde em um conflito com um prefeito boçal e corrupto e se vê impotente diante do seu destino (?). Mesmo contando com o suporte do amigo, um advogado de Moscou – símbolo da dubiedade do estado de Direito -, que desembarca no fim do mundo para defendê-lo. E traí-lo.
Na dimensão política de Leviatã, o estado é centralizador; a autoridade que detém o poder chama a si as decisões que seriam as da sociedade. (Mas) quem tem poder tem a força, lembra um personagem. E, assim como na citação ao cientista político clássico Thomas Hobbes, o monstro vai além: a guerra é de todos contra todos. Todos nós somos os culpados.
O filme muda de foco diversas vezes como ocorre na melhor tradição de outras obras primas russas. Os tempos de cinema dele são reais. Seus planos sequência são a melhor resposta à febre da montagem ultra-rápida – a editite – que levou o cinema americano, por exemplo, à exaustão e ao desgaste. A trama se desvia de foco várias vezes e desconcerta; exige atenção. Em momento algum o espectador pisca. Discute-se política, corrupção, amizade, adultério, abandono, religião. Mas subjacente, é sempre a culpa e a hipocrisia da sociedade náufraga encalhada que estão lá, do mar de Barents, como as carcaças dos navios e dos monstros marinhos (do inconsciente?) apodrecendo nas suas margens.
Em uma de suas entrevistas Zvyagintsev conta como nasceu o projeto de Leviatã. Uma ironia. “Em 2004, durante um jantar em Nova Iorque, eu ouvi a história de um americano, Marvin Heemeyer, e da sua revolta por causa de uma disputa de terras. Indignado porque estava sendo roubado pelo poder público, Marvin pegou um trator e usou-o para demolir a prefeitura, a casa do prefeito e outros edifícios da pequena cidade onde vivia. Depois, encontrei outras fontes de inspiração que afetaram a história final, caso de Leviatã, de Thomas Hobbes, o principal estudo sobre o homem e o estado, e a história bíblica de Jó.
O diretor de cinema russo e presidente do Comitê de Cultura da Câmara dos Deputados da Rússia, Stanislav Govorukhin, garante que o sucesso do filme nos Estados Unidos se deve principalmente à “atual conjuntura” se referindo ao segundo tempo da Guerra Fria que se esboça na Ucrânia. “Não. A história do homem contra o estado é universal e atemporal,” diz Zvyagintsev cuja produção foi financiada pelo Ministério da Cultura da Rússia. “Ela aponta para o momento da verdade no qual a pessoa se vê sozinha lutando contra o sistema e tem que lutar por sua dignidade e sua definição de justiça. A trama é construída no contexto da Rússia porque não existe outro lugar com o qual eu sinta tanta afinidade. Mas, independente da sociedade em que vivemos, temos que enfrentar uma decisão: agir como escravos ou como homens livres.”
A crítica cinematográfica colonizada, comprometida com a velha mídia e submissa à cultura e à olítica imperial americana vê em Leviatã o retrato uma sociedade especificamente russa que seria bêbada, corrupta e falida. A resposta está nas palavras de Zvyagintsev:
“É uma ilusão perigosa e uma ideia absurda pensar que o presidente Putin lê os nossos roteiros e decide pessoalmente o que pode ou não ser feito. Este filme é uma obra de arte e não uma declaração política. É a história sobre a vida e a dignidade humana. A maioria das críticas na Europa fala mais do seu aspecto dramático do que do político. A história que contamos pode acontecer na Rússia, na Inglaterra ou na Austrália. Pode acontecer em qualquer lugar.”
Na verdade, assim é e assim fica mais do que evidente em duas sequências de Leviatã. O personagem do advogado, símbolo do Estado de Direito, voltando as costas para a câmera - para o cidadão-, no trem, de volta para Moscou depois de abandonar Kolya. Antes das imagens finais, os crentes da pequena comunidade (nossa sociedade) deixando a missa dominical depois de ouvir um sermão implacável e cínico.
Eles vão como se fossem formigas, vestidos de negro sobre a neve branca e observados de cima, de um plongé de câmera vertiginoso. Melhor: como se fossem(os) baratas.
Carta Maior
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