Por Slavoj Žižek.
No rescaldo dos atentados de Paris, o filósofo esloveno Slavoj Žižek escreveu, no calor da hora, um artigo de intervenção no debate sobre o Charlie Hebdo. Rejeitando o diagnóstico de um impasse civilizacional entre ocidente e oriente, ele insistia que o fenômeno tinha de ser analisado a partir de um mesmo chão comum e recuperava a tese frankfurtiana de que o fascismo fundamentalista seria uma resposta – ainda que falsa e mistificadora – a uma fratura real no paradigma liberal. Republicado na Folha de S.Paulo, o texto teve uma repercussão em larga medida pautada pelo contraponto encomendado a João Pereira Coutinho e, como apontou Christian Dunker em sua intervenção no debate, por uma estigmatização da posição de esquerda que acabou por não registrar o essencial da contribuição de Žižek.
Neste novo artigo enviado pelo autor ao Blog da Boitempo, Žižek esmiúça sua posição mais a fundo, repassando (agora não mais no calor da hora) os principais atores e elementos envolvidos no fenômeno, mapeando os mecanismos ideológicos em jogo nas suas interpretações. Para ele, os ataques terroristas conseguiram o impossível: reconciliar a geração de 1968 com seu arqui-inimigo. O filósofo enfrenta ainda a difícil questão dos limites do humor e do “politicamente incorreto”, e mostra como é justamente neste debate que aparece a zona cinzenta que funda os impasses da modernidade capitalista. Para ele não devemos condenar o humor do Charlie Hebdo por ter ido longe demais, muito pelo contrário, “o problema é que ele se encaixava perfeitamente no funcionamento cínico hegemônico da ideologia em nossas sociedades. Ele não representava ameaça alguma àqueles no poder; ele meramente tornava seu exercício do poder mais tolerável.”
Contra as acusações de estar pregando o retorno a um novo fundamentalismo no ocidente, Žižek insiste enfim que “alegar que o anti-semitismo articula, de forma deslocada, uma resistência ao capitalismo de forma alguma o justifica” e que procurar compreender o mal, de forma alguma significa relativizar ele, nem “transformar opressor em vítima”, e conclui com a triste constatação de que é preciso abandonar a ideia de que há algo de emancipatório em experiências extremas, que o terror não nos permite abrir os olhos à radical verdade da situação. A tradução é de Artur Renzo, confira:
***
O OBSCENO DA IDENTIFICAÇÃO
A patética formula de identificação “Eu sou …” (ou “Somos todos …”) só funciona no interior de certos limites, para além dos quais converte-se em pura obscenidade. Podemos até proclamar “Je suis Charlie”, mas as coisas já começam a ruir com exemplos como “Somos todos de Sarajevo!” ou “Estamos todos em Gaza!”. O fato brutal de que não estamos de forma alguma em Sarajevo nem em Gaza é forte demais para ser compensado por uma patética identificação dessas. E a identificação se torna plenamente obscena no caso dos Muselmänner (o termo alemão para “muçulmanos”, usado para descrever os prisioneiros mais miseráveis e brutalizados de Auschwitz). É completamente inconcebível dizer: “Somos todos Muselmäner!” Em Auschwitz, a desumanização das vítimas foi tão longe que se identificar com elas em qualquer forma significativa é impossível. (E na direção oposta, seria também ridículo declarar solidariedade com as vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001 alegando que “Somos todos Nova Iorquinos!” Milhões diriam: “Sim, adoraríamos ser Nova Iorquinos, nos dê um visto norte-americano então!”)
O mesmo vale para os assassinatos do mês passado: era relativamente fácil se identificar com os jornalistas do Charlie Hebdo, mas teria sido muito mais difícil anunciar: “Somos todos Baga!” Para quem não ficou sabendo: Baga é uma pequena cidadezinha no nordeste da Nigéria onde Boko Haram executou duas mil pessoas. O nome “Boko Haram” pode ser traduzido meio ao pé da letra como “Educação ocidental é proibida” (mais especialmente educação das mulheres). Como dar conta do estranho fato da existência de um movimento sociopolítico maciço cuja principal pauta programática é a regulação hierárquica da relação entre os sexos? O enigma é o seguinte: por que é que esses muçulmanos, que estão sem dúvida expostos à exploração, dominação e outros aspectos destrutivos e humilhantes do colonialismo, miram sua reação na melhor parte (para nós, ao menos) do legado ocidental, nosso igualitarismo e nossas liberdades pessoais, incluindo a liberdade de tirar sarro de todas autoridades? A resposta óbvia é que seu alvo na verdade é muito bem escolhido: o oeste liberal é tão insuportável porque ele não só pratica a exploração e a violenta dominação, como ainda por cima apresenta essa realidade brutal à guisa de seu oposto: liberdade, igualdade e democracia.
ESPETÁCULO DE HIPOCRISIA
Mas voltemos ao espetáculo dos grande nomes políticos do mundo tudo de mãos dadas em solidariedade às vitimas das chacinas de Paris, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas: se alguma vez houve imagem de falsidade hipócrita, foi essa. Quando a procissão passava sob a janela de um cidadão anônimo, ele colocou pra tocar num alto falante a “Ode à alegria” de Beethoven, o hino não-oficial da União Europeia, acrescentando um tom de kitsch político ao repugnante espetáculo encenado pelos maiores responsáveis pela bagunça em que estamos hoje. E o que dizer do ministro estrangeiro Sergei Lavrov se juntando à fila de dignitários se manifestando diante da morte de jornalistas? Se ele se atrevesse a participar de uma tal marcha em Moscou (onde dezenas de jornalistas foram assassinados) ele seria imediatamente reprimido! E que tal a obscenidade do Netanyahu se espremendo para aparecer na frente da manifestação, enquanto que em Israel a mera menção pública a al-Nakbah (a “catástrofe” de 1948 para os palestinos) é proibida? Cadê a tolerância para com a dor e o sofrimento do outro?
E o espetáculo foi literalmente encenado: as fotos expostas na mídia davam a impressão de que a linha de líderes políticos estava na frente de uma grande multidão que marchava pela avenida – dando assim a impressão de uma suposta solidariedade e união com o povo… Só que outra foto foi tirada mais de longe pegando a cena toda e mostrou claramente que atrás dos políticos só haviam cento e poucas pessoas e muito espaço vazio, patrulhado de todos os lados pela polícia. O verdadeiro gesto digno do Charlie Hebdo seria ter publicado na sua capa uma caricatura grande e de brutal mal gosto tirando sarro desse episódio todo.
Embora eu seja um ateu resoluto, acredito que essa obscenidade foi demais até para Deus, que se viu obrigado a intervir com uma obscenidade divina digna do espírito do Charlie Hebdo: enquanto o presidente François Hollande abraçava Patrick Pelloux, o médico e colunista do Charlie Hebdo, na frente do escritório do semanário, um passarinho cagou no ombro do presidente francês! Os funcionários do jornal, ao fundo, se esforçavam para segurar o riso… Relembre, nesse contexto, a imagem cristã da uma pomba pousando para entregar uma mensagem divina… além disso, em alguns países, quando um pombo caga na sua cabeça, é sinal de boa sorte!
SOMOS TODOS POLICIAIS
Há ainda um elemento dos recentes acontecimentos na França que parece ter passado desapercebido: além dos cartazes e das faixas dizendo “Je suis Charlie” haviam outras que diziam “Je suis Flic” [Eu sou policial]. A grande unidade nacional celebrada e encenada em grandes mobilizações populares não era apenas a unidade das pessoas, atravessando grupos étnicos, classes sociais e religiões, mas também a unificação das pessoas às forças de controle e ordem.
Até então, a França era o único país no ocidente em que (até onde sei) os policiais eram um constante foco de piadas brutais os retratando como burros e corruptos (como era comum nos países ex-comunistas). Agora, no rescaldo da chacina do Charlie Hebdo, a polícia é aplaudida e elogiada – não só a polícia mas também o CRS (um dos slogans de maio de 1968 era inclusive “CRS-SS”), o serviço secreto e todo o aparato securitário estatal. Não há lugar para Snowden ou Manning nesse novo universo. “Ressentimento contra a polícia não é mais o que era, exceto entre a juventude pobre de origens árabes ou africanas”, escreveu Jacques-Alain Miller no mês passado. “Algo sem dúvida jamais visto na história da França”.1
Em resumo, os ataques terroristas conseguiram o impossível: reconciliar a geração de 1968 com seu arqui-inimigo em algo como uma versão popular francesa do Patriot Act, com pessoas se voluntariando para serem vigiadas.
A CONTRADIÇÃO IMANENTE DO POLITICAMENTE CORRETO
Esses momentos extáticos das manifestações de Paris foram um triunfo da ideologia: eles mobilizaram as pessoas contra um inimigo cuja fascinante presença momentaneamente oblitera todos os antagonismos. Ao publico restou uma escolha deprimente: ou você está com os Flics [policiais], ou está com os terroristas. Mas como é que o humor irreverente do Charlie Hebdo se encaixa aqui nesta escolha? Para responder a esta questão temos que ter em mente a interconexão entre o Decálogo e os direitos humanos como seu obverso moderno: que o que a experiência de nossa sociedade liberal-permissiva demonstra é que os direitos humanos são no final das contas os direitos de violar os dez mandamentos.2
O direito à privacidade é um direito a cometer adultério. O direito à propriedade privada é um direito de roubar (de explorar os outros). O direito de liberdade de expressão é um direito de dar falso testemunho. O direito de portar armas é um direito de matar. O direito à liberdade de culto religioso é um direito de adorar falsos deuses. É claro, os direitos humanos não toleram diretamente a violação dos Mandamentos, mas eles mantém aberta uma zona cinzenta marginal que deve estar fora do alcance do poder (religioso ou secular). Nessa zona cinzenta, eu posso violar os mandamentos, e se o poder se debruçar sobre ela e me pegar no flagra, posso gritar: “Assalto aos meus direitos humanos básicos!” A questão é que para o poder é estruturalmente impossível traçar uma linha clara de separação para prevenir só o “uso indevido” dos direitos humanos sem infringir no seu uso adequado, isto é, o uso que não viola os mandamentos.
É nessa zona cinzenta que pertence o humor brutal do Charlie Hebdo. Lembremos como o semanário começou em 1970 como um sucessor do Hara-Kiri, um periódico banido por ter tirado sarro da morte do General de Gaulle. Depois de receberem uma carta de leitor acusando o Hara-Kiri de ser “estúpido e maldoso” (“bête et méchant”), a frase foi adotada como o slogan oficial do jornal e passou a permear a linguagem cotidiana: “Hara-Kiri: journal bête et méchant”. Essa é a zona cinzenta do Charlie Hebdo: não sátira benevolente mas sim, muito literalmente, estúpida e maldosa, de forma que seria mais apropriado que os milhares marchando em Paris proclamassem “Je suis bête et méchant” ao invés do simples e piegas “Je suis Charlie”. E de fato, as manifestações midiáticas de solidariedade em Paris foram efetivamente “bête et méchant”.
Por mais refrescante que podia ser em algumas situações, a atitude “bête et méchant” do Charlie Hebdo é condicionada pelo fato de que o riso não é por si só liberador, mas profundamente ambíguo. Lembremos daquele famigerado contraste que a imagem difundida da Grécia Antiga nos trás: entre os Espartanos solenes e aristocráticos e os Atenienses jocosos e democráticos. O que escapa a essa imagem é que os espartanos, que se orgulhavam de sua severidade, punham o riso no centro de sua ideologia e prática: eles reconheciam o riso comunal como um poder que ajudava a aumentar a glória do Estado. (Os atenienses, em contraste, legalmente restringiam tal riso brutal e excessivo como uma ameaça ao espírito do respeitável diálogo onde nenhuma humilhação do oponente deve ser permitida). O riso espartano – a zombaria brutal de um inimigo ou escravo humilhado, tirando sarro de seu medo e dor a partir de uma posição de poder – encontrou um eco nos discursos de Stalin, quando ele escarnecia do pânico e da confusão dos “traidores”, e persiste ainda hoje, no humor dos ditos “politicamente incorretos”. (Aliás, esse riso deve ser distinguido ainda de outro tipo de riso daqueles em poder, a derrisão cínica que mostra que eles próprios não levam sua ideologia a sério).
O problema com o humor do Charlie Hebdo não é que ele tenha ido longe demais em sua irreverência, mas que era um excesso inócuo que se encaixava perfeitamente no funcionamento cínico hegemônico da ideologia em nossas sociedades. Ele não representava ameaça alguma àqueles no poder; ele meramente tornava seu exercício do poder mais tolerável.
É nesse sentido que devemos abordar o delicado tema dos diferentes modos de vida. Nas sociedades liberais-seculares ocidentais, o poder do Estado protege as liberdades públicas mas intervém no espaço privado – quando há uma suspeita de abuso infantil, por exemplo. Mas como esclarece Talal Asad3, tais “intrusões no espaço doméstico, em domínios ‘privados’, não são permitidas pela Lei Islâmica, embora a conformidade no comportamento “público” pode até ser mais rigorosa. […] Para a comunidade, o que importa é a prática social do sujeito muçulmano – incluindo manifestações verbais – não seus pensamentos internos, quaisquer que possam ser.” O Al corão diz: “A verdade emana do vosso Senhor; assim, pois, que creia quem desejar, e descreia quem quiser.” Mas, nas palavras de Asad, esse “direito de pensar o que for que se quiser não […] inclui o direito de expressar suas crenças religiosas ou morais publicamente com a intenção de converter pessoas a um ‘falso comprometimento’”. É por isso que, para os muçulmanos, “é impossível permanecer em silêncio quando confrontados com a blasfêmia […] sua reação é tão acalorada pois para eles, a blasfêmia não é nem ‘liberdade de expressão’ nem o desafio representado por uma nova verdade mas algo que busca perturbar uma relação de vida”. Do ponto de vista liberal ocidental, há um problema com ambos os termos desse nem/nem: e se a liberdade de expressão passasse a incluir também atos que podem perturbar uma relação viva? E se uma “nova verdade” tiver o mesmo efeito disruptivo? Uma decodificação científica do universo não tende a perturbar uma “relação de vida” tradicional? E se uma nova consciência ética fizer com que uma relação de vida existente apareça injusta?
Se, para os muçulmanos, não é somente “impossível permanecer em silêncio diante da blasfêmia” como é também impossível permanecer inativo – e o impulso de fazer algo pode incluir aí atos violentos e assassinos – então a primeira coisa que devemos fazer é localizar essa atitude em seu contexto contemporâneo. O mesmo vale para o movimento cristão anti-aborto, que também acha “impossível permanecer em silêncio” diante das mortes de centenas de milhares de fetos todo dia, uma chacina que eles comparam ao Holocausto. É aqui que começa a tolerância: a tolerância ao que sentimos como impossível-de-suportar (“l’impossible-a-supporter”, na formulação de Lacan), e nesse ponto o “politicamente correto” da esquerda liberal se aproxima do fundamentalismo religioso com sua própria lista de “blasfêmias” diante das quais é “impossível permanecer em silêncio”: machismo, racismo e outras formas de intolerância. O que aconteceria se um jornal abertamente zombasse do Holocausto?
É fácil tirar sarro de todas as regras muçulmanas para cada detalhe da vida cotidiana (uma característica que, aliás, compartilham com o judaísmo), mas e da lista “politicamente correta” de todos aqueles jogos de “sedução” (sic.) que podem ser considerados assédio verbal, das piadas que são consideradas racistas ou machistas – ou ainda “especiestas” (que tiram sarro de outras espécies de animais que não a humana)? O que interessa ressaltar aqui é que há uma contradição imanente na posição liberal de esquerda: a posição libertária de ironia universal e zombaria, tirando sarro de todas as autoridades, espirituais e políticas (a atitude personificada no Charlie Hebdo), tende a deslizar em seu oposto, uma sensibilidade aguçada à dor e à humilhação do outro.
RESPOSTAS À ESQUERDA
É por conta dessa contradição que boa parte das reações de esquerda às chacinas de paris seguiram um deplorável padrão previsível: eles corretamente suspeitaram que algo estava profundamente errado com o espetáculo do consenso e da solidariedade liberal para com as vítimas, mas tomaram a direção errada quando se permitiram condenar as chacinas só depois de longas e enfadonhas qualificações do tipo “também somos todos culpados”. Esse medo de que ao condenar abertamente a chacina estaríamos de alguma forma alimentando a islamofobia é politicamente e eticamente errado. Não há nada de islamofobico em condenar as chacinas de paris, da mesma forma em que não há nada de anti-semita em condenar o tratamento de Israel aos palestinos.
Quanto à noção de que devemos contextualizar e “compreender” as chacinas de Paris, ela pode também ser uma completa armadilha. Talvez um dos melhores exemplos de burrice mascarada de profunda sabedoria seja o ditado: “Um inimigo é alguém cuja história você ainda não conhece”.4 Não há exemplo melhor dessa tese que Frankenstein, de Mary Shelley. Shelley faz algo que um conservador jamais teria feito. Em uma parte central de seu livro, ela permite que o monstro fale por conta própria e nos conte a história a partir de sua perspectiva. Essa escolha de Shelley expressa, em seu nível mais radical, a atitude liberal diante da liberdade de expressão: o ponto de vista de todos deve ser ouvido. Em Frankenstein, o monstro não é um terrível objeto que ninguém ousa confrontar; ele está plenamente dotado de subjetividade. Shelley mergulha na sua mente e pergunta como é ser rotulado, definido, oprimido, excomungado, e ainda fisicamente distorcido pela sociedade. O supremo opressor pode assim se apresentar como supremo oprimido. O monstruoso assassino se revela como sendo um individuo profundamente machucado e em apuros, ansiando por companhia e amor… Há, no entanto, um claro limite para esse procedimento: será que estamos dispostos a afirmar que Hitler só era um inimigo porque sua história não foi realmente ouvida? Para mim, muito pelo contrário, quanto mais conheço e “compreendo” Hitler, tanto mais imperdoável ele aparece a mim. Compreender o mal não é perdoá-lo, é ver como o mal funciona – com isso, o mal não é de forma alguma relativizado muito menos amenizado.
O que isso também significa é que, ao abordarmos o conflito Israel-Palestina, devemos nos ater a padrões frios e implacáveis: devemos incondicionalmente resistir à tentação de “compreender” o anti-semitismo arábico (quando realmente o encontramos) como uma reação “natural” à triste condição dos palestinos, ou de “compreender” as medidas de Israel como uma reação “natural” à memória do Holocausto. Não deve haver “compreensão” alguma para o fato de que em muitos países árabes Hitler seja considerado um herói, e que crianças na pré-escolas são incutidas de inúmeros mitos anti-semitas, dos notoriamente forjados Protocolos dos sábios de Sião até alegações ridículas de que os judeus usam o sangue das criancinhas para fins sacrificiais.
Alegar que esse anti-semitismo articula, de forma deslocada, uma resistência ao capitalismo de forma alguma o justifica (o mesmo vale para o anti-semitismo nazista: ele também extraiu sua energia da resistência anti-capitalista). O deslocamento aqui não é uma operação secundária, e sim o gesto fundamental de mistificação ideológica. O que essa alegação sim implica é a ideia de que, no longo prazo, a única forma de derrotar o anti-semitismo não é pregando a tolerância liberal, mas articular o motivo anticapitalista subjacente de uma forma direta, não deslocada.
A LIÇÃO DO TERROR
O ponto chave é portanto precisamente não interpretar ou julgar atos singulares “em conjunto”, não localizar eles no “contexto mais amplo”, mas extraí-los de sua textura histórica: as atuais ações das Forças de Defesa de Israel na Margem Oeste não devem ser julgadas contra o pano de fundo do Holocausto; a celebração que muitos árabes fazem à imagem de Hitler ou a profanação de sinagogas na França e por toda parte na Europa não devem ser julgados como reações inapropriadas porém compreensíveis ao que Israel está fazendo na Margem Oeste.
Quando qualquer protesto contra Israel é categoricamente denunciado como uma expressão de antissemitismo – isto é, quando a sombra do Holocausto é permanentemente evocada a fim de neutralizar qualquer crítica às operações militares e políticas de Israel – será que não basta insistir na diferença entre antissemitismo e crítica a políticas específicas do Estado de Israel que, nesse caso, esta profanando a memória das vítimas do Holocausto, as instrumentalizando como uma forma de legitimar medidas políticas presentes?
O que isso significa é que devemos categoricamente rejeitar a noção de qualquer ligação lógica ou política entre o Holocausto e as atuais tensões Israel-Palestina. Eles são dois fenômenos rigorosamente diferentes: um deles é parte da história europeia da resistência direitista às dinâmicas da modernização; a outra é um dos últimos capítulos na história da colonização. Em contrapartida, a difícil tarefa diante dos palestinos é aceitar que seu verdadeiro inimigo não são os judeus, mas sim os próprios regimes árabes que manipulam sua condição oprimida precisamente para prevenir essa transformação – isto é, a radicalização política em seu próprio seio.
A ascensão do antissemitismo na Europa é inegável. Quando, por exemplo, uma minoria muçulmana agressiva em Malmö molesta os judeus a ponto deles terem medo de andar nas ruas com suas vestimentas tradicionais, isto deve ser condenado claramente e sem ambiguidade. A luta contra o antissemitismo e a luta contra a islamofobia devem ser vistos como dois aspectos de uma mesma luta. E longe de configurar uma posição ingenuamente utópica, essa necessidade de uma luta comum se funda na própria natureza de vasto alcance que as consequências da opressão extrema têm.
Em uma memorável passagem de seu Still Alive, Ruth Klüger descreve uma conversa com “alguns candidatos avançados de PhD” na Alemanha:
Um deles relata como ele conheceu um velho judeu húngaro que era um sobrevivente de Auschwitz, e entretanto esse homem xingava os árabes e nutria desprezo por eles. “Como pode alguém que vem de Auschwitz falar assim?”, pergunta o alemão. Eu entro na conversa e discuto, talvez de forma mais acalorada do que fosse preciso. O que ele esperava? Auschwitz não era nenhuma instituição de instrução […] Não se aprendia nada lá, muito menos humanidade e tolerância. “Absolutamente nada de bom saiu dos campos de concentração”, eu me pego dizendo, com minha voz se elevando, e ele espera catarse, purgação, o tipo de coisa que se espera quando se vai ao teatro? Foram os estabelecimentos mais inúteis e sem sentido imagináveis.
Ou seja, o extremo horror de Auschwitz não o fez um lugar que purifica suas vítimas sobreviventes tornando as sujeitos eticamente sensíveis desprovidos de interesses egoístas tacanhos; muito pelo contrário, parte do horror de Auschwitz é que ele também desumanizou muitas de suas vítimas, as transformando em sobreviventes brutos e insensíveis e tornando impossível para elas praticarem a arte do juízo ético balanceado.
Temos que abandonar a ideia de que há algo emancipatório em experiências extremas, que elas nos permitem abrir os olhos à radical verdade da situação. Essa talvez seja a mais deprimente lição do terror.
NOTAS
1. Ver Jacques-Alain Miller, “L’amour de la police“, bloggado em 1/13 2015 e publicado em inglês em lacan.com como “France loves its cops“.
2. Me baseio aqui no artigo de Julia Reinhard Lupton (UC Irvine) and Kenneth Reinhard (UCLA), “The Subject of Religion: Lacan and the Ten Commandments.”
3. Talad Asad, Wendy Brown, Judith Butler, Saba Mahmood, Is Critique Secular? Blasphemy, Injury, and Free Speech, Berkeley: University of California Press 2009.
4. Epígrafe de “Living Room Dialogues on the Middle East,” citado em Wendy Brown, Regulating Aversion, Princeton: Princeton University Press 2006.
5. Ruth Kluger, Still Alive: A Holocaust Girlhood Remembered, New York: The Feminist Press 2003, p. 189.
* Texto enviado pelo autor ao Blog da Boitempo. A tradução é de Artur Renzo.
***
Nenhum comentário:
Postar um comentário