segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A grande imprensa é golpista ?


Rui Martins

É correto, num regime democrático, se chamar a oposição de golpista?

Faz semanas que ando ruminando uma questão, depois de ler alguns comentários nas redes sociais e blogs postados por militantes de esquerda petistas ou dilmistas. Na impossibilidade de ir num café ou cervejaria para discutir com companheiros jornalistas, decidi colocar aqui por escrito. Quem quiser responde, senão basta refletir sobre a questão – a grande imprensa é mesmo golpista?

A maioria dos jornalistas de minha idade ou da nova geração estagiaram e iniciaram a profissão num grande jornal privado, regional de alcance estadual ou municipal, um ou outro com ambição nacional. Só alguns, poucos, começaram e trabalham num jornal ou portal dito independente de esquerda, como Brasil de Fato ou Caros Amigos, porque infelizmente até hoje não existem grandes jornais de esquerda. Devo incluir também a Carta Capital? Não sei de quem deveria ter partido a iniciativa de se criar uma mídia de esquerda, do governo, de um partido, de grupos empresariais com idéias arejadas?

Paradoxal é ter existido durante a ditadura, órgãos independentes com boa circulação como Movimento e Opinião. Durante o governo de Vargas, Samuel Wainer com o apoio petebista e isso quer dizer empréstimos, subvenções, atrasos nos descontos para a previdência dos funcionários, criou a Última Hora que não era um jornal de centro esquerda, nos moldes europeus, mas um cotidiano populista nacionalista. Foi um celeiro de bons jornalistas e o conhecido e respeitado Jânio de Freitas veio de lá.

Logo depois do golpe de 64, um dos jornais apoiadores dos militares pela queda de Jango Goulart, rompeu com o ditador Castelo Branco quando constatou haver a intenção dos militares ficarem no poder e amordaçarem a imprensa por tempo indeterminado. Foi o Estadão, que reagiu contra a censura e publicava versos de Camões no lugar das notícias censuradas.

Em janeiro de 1967, junto com Ivam de Barros Bella, David de Moraes, Narcisio Kalili e outros organizamos o Encontro com a Liberdade, no Teatro Paramount, em São Paulo, contra o projeto de lei de censura do primeiro ditador, o Castelo Branco. Fui o secretário da mesa, ao lado de Mario Martins, que presidia o encontro. Apesar de termos o mesmo sobrenome não éramos parentes e nem nos conhecíamos pessoalmente. A mesa eram ampla e dela participavam uma vintena de lideranças nacionais de esquerda de resistência à ditadura. O teatro estava abarrotado. Ali também compareceram os investigadores do DOPS, prestando uma informação detalhada sobre os participantes, como pude averiguar faz alguns anos ao folhear meu fichário pessoal, nos arquivos agora públicos.

Comecei minha carreira no jornal Estadão, ainda na época da rua Major Quedinho, apenas alguns meses depois do golpe. Ao contrário do que muitos podem pensar, foi no Estadão, jornal de direita, que desenvolvi minha formação política, no contato diário com colegas de tendências diversas de esquerda. Ainda ali trabalhava Vladimir Herzog, antes de partir para a BBC de Londres. Jovem, recém-formado em Direito pela USP, eu nutria admiração pelo comunista português Miguel Urbano Rodrigues, que redigia diariamente o editorial do Mesquitão, o dono do jornal. Foi o jornalista Mathias Arrudão, seu pseudônimo, quem me levou à Editora Fulgor para publicar o primeiro livro, um ensaio de sociologia, ainda em 1966, sobre o fenômeno Roberto Carlos, preenchendo o vazio criado pelas cassações feitas pela ditadura. Coisas impossíveis aconteciam – uma delas foi minha entrevista exclusiva com o presidente da UNE, José Luís Guedes, escondido no meu apartamento com a esposa e filhinha de alguns meses.

Mas é claro, nem tudo eram flores e acabei sendo despedido do Estadão, mas não chegou a ser um drama, pois assumi como chefe de Redação da sucursal em São Paulo, da Última Hora do Rio, lugar que o colega Vicente Wisenbach estava deixando. Uma redação viva, onde vinha a esposa de Regis Debray, Elizabeth, assim como os resistentes à ditadura, como Dulce Maia, Diógenes, Isaias Almada, resistentes que acabaram presos; Dulce e Diógenes trocados depois do sequestro do embaixador americano, foram para Argel.

Por que conto tudo isso? Porque acho um processo muito minimalista o feito por muitos bloqueiros, o de se rotular a grande imprensa como golpista, isso englobando evidentemente seus profissionais, quando uma boa parte dos resistentes à ditadura eram jornalistas como Fernando Gabeira, repórter do Jornal do Brasil, sem se esquecer da atuação do Correio da Manhã, e do Carlos Heitor Cony com suas colunas, reunidas no livro O Ato e o Fato.

O Brasil tem, como ocorre em países democráticos da Europa, uma imprensa empresa, com grandes jornais dirigidos por famílias, e essa imprensa é de direita, mesmo porque não houve interesse da esquerda e nem do atual governo (de esquerda?) em criar grandes veículos de informação ou se houve não deu certo. A ditadura militar acabou com a Última Hora e o PT, nos seus doze anos de governo, não criou nada em termos de mídia. Ao contrário, nos últimos quatro anos, a responsável pela Comunicação da presidenta Dilma, a ministra Helena Chagas, concedia a maior parte do bolo da publicidade do governo para a grande mídia, Globo, jornal e tevê, Folha, Estadão.

Na minha opinião seria mais correto se dizer imprensa de direita em lugar de imprensa golpista, mesmo porque o Brasil já está maduro, já passou por esses períodos de golpes militares e, se o atual governo do PT perder para outro partido, em 2018, não terá havido golpe mas alternância de poder.

Tenho a impressão de que o PT não pratica uma boa educação democrática junto aos seus militantes que, ao lerem noticiários críticos ao seu partido, partem para uma simplificação intolerante, qualificando os jornais de golpistas. Ora, numa democracia, se pode publicar os fatos mesmo se desagradam ao governo. Houve mensalão ou Caixa 2? Tudo indica ter havido, como ocorre com financiamentos de partidos na Europa, tanto que existe mesmo uma decisão do STF a respeito. Existiu corrupção na Petrobrás, tudo indica ter existido e talvez ainda exista, os noticários inclusive nos grandes jornais europeus não são invenção e nem tentativa de golpismo.

Qual seria a melhor atuação da imprensa? Ocultar Tchernobyl como tentaram fazer, na época, o governo e os jornais soviéticos? A pretexto de respeito pela presidenta, se deveria ocultar todo o noticiário sobre a Petrobrás e se esperar até ficar tudo devidamente comprovado com os julgamentos e condenação dos atuais suspeitos envolvidos? Mas, infelizmente, isso já não seria o exercício da imprensa livre, mas controle da imprensa, maneira de agir da imprensa oficial de partido único.

Como se pode considerar a qualquer pretexto a imprensa brasileira golpista, quando essa mesma parcela da nossa esquerda vem aceitando apoiar regimes não democráticos, onde os direitos humanos sequer são respeitados como o Irã ou regimes autoritários, como o russo, onde jornalistas independentes são assassinados quando criticam o governo? Onde o homossexualismo é punido? Vamos, então, trocar os atuais artigos da “imprensa golpista” pelos artigos traduzidos em português da Voz de Teerã, exemplo de imprensa censurada?

Há alguns anos discordei do colega Ricardo Kotcho, quando se falava na criação do Conselho de Jornalismo, por considerar o risco de tal órgão passar a controlar a imprensa. E, hoje, vejo com certa apreensão a falada regulação da mídia, que poderá se tornar numa maneira de se censurar a imprensa. Como já afirmei em outras oportunidades, o governo brasileiro, não sei mais se é de esquerda, mas, se for ainda de esquerda, deve ajudar na criação e desenvolvimento de uma mídia de esquerda, dentro de um clima de mídia pluralista. Mas como jornalista que resistiu à ditadura no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, e foi obrigado a se exilar. E como jornalista que organizou e secretariou o Encontro pela Liberdade contra a censura imposta pelos militares durante a ditatura, deixo desde já claro que não apoiarei e denunciarei toda tentativa, mesmo sutil, de controle da imprensa

Em contrapartida, o governo poderá, por exemplo, melhorar os programas da TV Brasil, fazer publicidade dela, torná-la um meio de comunicação mais popular, capaz de concorrer com as tevês privadas. Criar um sucedâneo da Última Hora, ajudar no surgimento de um jornal de centro-esquerda convivendo com a mídia de direita. Porém, nunca imaginar formas de cabrestos para dificultar o exercício livre da imprensa.

A explosão das redes sociais, dos portais e blogs democratizou a maneira de se informar, já existe um contraponto ao noticiário da direita. Basta se acabar com essa maneira de se considerar a oposição como golpista, tentando desqualificar desde já as próximas eleições democráticas, no caso de haver no Brasil uma alternância no poder.



Rui Martins,jornalista, escritor, líder emigrante, ex-membro eleito do Conselho de Representantes dos Brasileiros do Exterior junto ao Itamaraty, autor do livro Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas bancárias suíças de Maluf na Suíça, editor do Direto da Redação, é correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI na Suíça.



Correio do Brasil



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