Os homicídios são a principal causa de morte entre os jovens brasileiros aponta o Mapa da Violência 2013
Thais Paiva
Julio Waiselfisz, coordenador do estudo: “A vítima da violência torna-se culpada”
Entre 2008 e 2011, o Brasil – país sem disputas territoriais, movimentos emancipatórios, guerras civis ou enfrentamentos religiosos, raciais, ou étnicos – registrou um total de 206.005 vítimas de homicídio, número superior aos 12 maiores conflitos armados ocorridos no mundo entre 2004 e 2007. Só em 2012 foram contabilizados 56,3 mil assassinatos, o maior número desde 1980. Os dados compõem o Mapa da Violência 2013: Homicídios e juventude no Brasil, apresentado por Julio Jacobo Waiselfisz, sociólogo e coordenador da Área de Estudos da Violência da Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais (FLACSO).
O principal alvo dessa violência são os jovens. O diagnóstico aponta os homicídios como a principal causa de morte entre brasileiros com idades entre 15 e 24 anos, atingindo especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Segundo o Ministério da Saúde, mais de metade dos 52.198 mortos em homicídios, em 2011, no Brasil eram jovens, dos quais 71,44% negros (pretos e pardos) e 93,03% do sexo masculino. Por telefone, Waiselfisz falou à Carta na Escola sobre o aumento epidêmico da violência no Brasil e as estratégias que podem levar à sua prevenção.
Carta na Escola: É possível apontar as causas do aumento da violência no País?
Julio Jacobo Waiselfisz: Há no Brasil uma cultura da violência muito acentuada que leva à resolução de conflitos via extermínio do próximo e não pela negociação civilizada. Uma pesquisa recente realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) analisou inquéritos policiais de homicídios de 16 unidades federativas do Brasil para ver quais eram as principais causas que levavam ao crime. Em 14 dos 16 estados prevaleceram os homicídios por motivos fúteis e banais. Ou seja, uma rixa entre vizinhos, parentes, desconhecidos, leva o indivíduo a pegar uma arma e matar o próximo. Outro fator é que temos uma enorme tolerância institucional à violência. As instituições, que deveriam ter como pilar o cumprimento da Justiça, são as primeiras a violar o ordenamento legal. Uma forma de tolerância institucional é tornar a vítima a culpada da violência. A mulher que provocou o estupro porque estava vestida de determinada forma, a criança porque estava envolvida com o crack. E essa cultura da violência não se resolve com polícia, mas com educação, estrutura social.
CE: O estudo mostra que, em comparação com outros grupos etários, os jovens de 15 a 24 anos no Brasil morrem de forma mais violenta. Por quê?
JJW: Há uma síndrome de violência juvenil não somente no Brasil, mas em outros países do mundo. Isso se dá em razão da baixa incorporação dos jovens pelo sistema. Por exemplo, no Brasil, aproximadamente 20% deles não trabalham nem estudam. Não conseguem emprego porque não possuem estudo e não estudam porque a família não tem dinheiro. Portanto, são jovens com pouco acesso a uma série de benefícios sociais e esse é o caldo da cultura da violência. De outro lado, há uma forte pressão social consumista sobre essa juventude, que tem de usar determinada marca de jeans, de carro. Na medida em que esses jovens não têm condições sociais de acesso a esses bens de prestígio, qualquer alternativa de acesso torna-se legítima, como roubos e outros crimes.
CE: Qual é o perfil do jovem brasileiro mais impactado pela violência?
JJW: São preferentemente os jovens negros, da periferia urbana, as principais vítimas e algozes da violência. Se na virada do século XXI a taxa de mortes entre os jovens brancos caiu drasticamente, algo entre 20% e 30%, o índice de homicídios de jovens negros aumentou na mesma proporção. Em 2002, morriam, aproximadamente, 60% mais jovens negros que brancos, hoje morrem 200% mais. Isso revela um crescimento do extermínio da população negra brasileira.
CE: Por que aumentaram os homicídios entre a população jovem negra?
JJW: Há no Brasil, em teoria, uma democracia racial. Mas há também mecanismos estruturais de segregação que atuam eficientemente. Quem tem dinheiro manda o filho para a escola privada, quem não tem manda para a escola pública. Quem tem dinheiro tem plano de saúde, quem não tem precisa se conformar com o SUS. Isso está acontecendo em todas as áreas que antigamente eram atribuições do aparelho do Estado. Benefícios sociais básicos, escritos na Constituição, na lei. Há, aproximadamente, duas, três décadas, os setores mais abastados começaram a contratar segurança privada. Carros blindados, grades para as casas, guaritas de segurança, chips para os carros e os indivíduos não serem roubados. Há uma indústria que gira em torno da insegurança da população. Há, no entanto, estatísticas, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, que mostram que os negros ganham, aproximadamente, 60% do que ganham os brancos. Os brancos podem pagar por segurança privada, mas e os negros? Assim criam-se populações marginais, periféricas. Os brancos moram em bairros segregados, não porque os negros não possam entrar, mas porque não podem pagar para morar ali. Esses bairros têm uma dupla segurança: pública e privada. Além disso, possuem estrutura, vias de acesso que facilitam a segurança. E os bairros da periferia não possuem segurança nem pública nem privada.
CE: O estudo fala também em interiorização e disseminação da violência. O que é isso?
JJW: A partir da última década, começa a se observar um fenômeno no Brasil que é o deslocamento dos polos de desenvolvimento econômico. O preço da terra e da mão de obra nas grandes metrópoles fica muito caro para os novos empreendimentos. Os municípios do interior e de outros estados começam a oferecer benefícios para a implantação de novos polos. Surge a Zona Franca de Manaus (AM), Camaçari (BA), Suape (PE). A violência que então se concentrava nas regiões metropolitanas migra para essas novas regiões, ocorrendo a disseminação da violência em nível nacional. Mal equipados e preparados para enfrentar a violência, os novos polos de crescimento econômico viram polos da criminalidade, da ilegalidade. Além disso, surgem outras atividades que estimulam a criminalidade. Por exemplo, grandes empreendimentos agrícolas na região amazônica levam ao surgimento da biopirataria, do contrabando de zona de fronteira, desmatamento, extermínio de populações indígenas locais. Ou seja, esses locais tornam-se extremamente violentos.
CE: Quais são hoje as políticas públicas de enfrentamento à violência juvenil?
JJW: São vários os programas que falam do enfrentamento à violência juvenil em esferas diferentes, como o Brasil Seguro e a Juventude Viva. Só que os indicadores mostram deficiências nesses programas, pois a violência juvenil está aumentando. Ou seja, o que está sendo feito não é suficiente. Hoje não existem instrumentos nem estrutura para o enfrentamento à violência. Uma série de reformas deveria ser feita e não foi até hoje, como a reforma do Código de Processo Penal, do sistema de segurança, das polícias, do sistema penal. São todas reformas inconclusas que estão sendo discutidas há dez, 15 anos e que não chegam a nenhuma conclusão. Na medida em que não existem essas reformas, temos limites a partir dos quais não se consegue avançar.
CE: Que reformas seriam essas?
JJW: Estou falando do processo de produção de Justiça, que começa com a instauração do inquérito policial para encontrar os culpados, as provas que passam pelo Ministério Público e vão à Justiça. Em 2011, a Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp) fez uma análise e concluiu que o nosso sistema de Justiça nos casos de crimes capitais é muito tolerante, pouco eficiente e estabeleceu várias metas. A meta 2 diz o seguinte: elucidar todos os inquéritos policiais de homicídios no Brasil instaurados até dezembro de 2007 e ainda em aberto. O Código de Processo Penal diz que a polícia tem prazo de 30 dias para elucidar um inquérito no caso de não haver um indiciado preso e um prazo de 15 dias se há um indiciado preso. Haviam se passado quatro anos e esses inquéritos instaurados até dezembro de 2007 não estavam resolvidos. Ou seja, quatro anos e estavam ainda dormindo nas prateleiras da delegacia. Fazendo um cálculo estimativo, podemos dizer que, no Brasil, só 4% a 5% dos homicidas vão para a cadeia. Há uma impunidade muito grande que estimula o próprio crime, a própria violência.
CE: Segundo o estudo, Alagoas é o estado com o maior índice de homicídios entre jovens. É também o estado com o pior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). É possível relacionar esses dois dados?
JJW: A saída da barbárie está marcada pela capacidade de solucionar pacificamente conflitos. A educação é o principal mecanismo de incorporação social. A educação é o instrumento que vai marcar esse tipo de passagem, trâmite civilizatório, da extrema violência para a capacidade de convivência pacífica e tolerância às diferenças. O que está acontecendo no Brasil, pelo menos entre os jovens na faixa de 15 a 18 anos, é que estamos perdendo a guerra da educação.
CE: Como o professor, o educador, pode prevenir o aparecimento da violência?
JJW: Criando uma cultura de paz e tolerância às diferenças. Em pesquisas feitas em escolas, vemos altos índices de homofobia por parte dos alunos, por exemplo. A pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público realizada a partir dos inquéritos policiais mostra, basicamente, que a maior parte dos homicídios no Brasil está relacionada a essa intolerância com o próximo. O papel do docente, do professor, é ser um agente de mediação social da paz e da tolerância na convivência humana. Da capacidade de os indivíduos conviverem pacificamente, apesar das diferenças.
Controvérsia
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