Vladimir Safatle
Jake Tapper é jornalista da CNN norte-americana
Ao entrevistar uma representante da Autoridade Palestina, não lhe veio ideia melhor à cabeça do que acusar os palestinos que morrem atualmente em Gaza de serem possuídos por uma "cultura do martírio", expressa por eles pretensamente se deixarem matar enquanto suas cidades são devastadas.
Sim, Jake, você deve ter razão, palestinos não passam de fanáticos irracionais, cuja única razão de existência é obrigar perversamente os ocidentais a saciarem seu estranho desejo de martírio.
Enquanto Jake desfilava seu racismo sem complexos, o governo francês impedia sua população de se manifestar contra a mais recente ação de punição coletiva do governo israelense contra os palestinos.
O argumento era que a última manifestação teve confrontos na frente de uma sinagoga envolvendo manifestantes e uma autonomeada Frente de Defesa Judaica (FDJ).
Difícil, neste caso, não lembrar de outra proibição, ocorrida na Inglaterra anos atrás.
Na ocasião, a BBC resolveu produzir uma campanha pedindo donativos para as vítimas de Gaza. No entanto, a mobilização foi vetada. Certamente porque, para a cúpula da emissora, ter compaixão por palestinos já é ser cúmplice do terrorismo internacional. Manifestar-se contra ações militares em um território transformado, segundo o próprio primeiro-ministro britânico, David Cameron, em "campo de concentração", deve ser algo da mesma natureza.
Tudo isto demonstra como os palestinos são o verdadeiro sintoma da hipocrisia internacional. Já temos mais de 400 mortos, quase um quarto de crianças, e preferimos não apelar ao "direito de ingerência humanitária", que permite ignorar soberanias nacionais em caso de catástrofes humanitárias ou lutar por campanhas de boicotes econômicos contra o governo israelense.
Talvez porque os palestinos já foram há muito retirados de sua humanidade. Para uma certa opinião internacional, eles morrerem é algo tão natural quanto as marés. Outros choram lágrimas de silicone ao afirmar que os dois lados estão envoltos em uma "espiral de violência".
No entanto, não há simetria alguma nesta situação.
Os palestinos tem seu território invadido há décadas em flagrante violação de direito internacional. Hoje sua condição é de milhões de apátridas, desprovidos de qualquer direitos, segregados, vivendo em bantustãs sem cidadania ou sequer um reles passaporte.
Mas, afinal, como dizem alguns que escreveram nesta Folha, os palestinos sequer seriam um povo. Ou seja, eles já foram exterminados simbolicamente. Só falta exterminá-los efetivamente.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças.
Folha SP
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