Literatura produzida na periferia de São Paulo cresce em leitores e autores, recebe destaque no exterior e é convidada de honra na Feira de Buenos Aires
Lívia Lima
“Ver tanta gente saindo ao mesmo tempo do Brasil é muito inédito” Alessandro Buzo (Arthur Rampazzo Roessle)
“Nóis é ponte e atravessa qualquer rio.” O verso do poeta Marco Pezão, do Sarau A Pleno Pulmões, já se tornou um dos lemas dos participantes dos mais de 50 saraus que acontecem atualmente na cidade de São Paulo. A atividade surgiu como alternativa à ausência de espaços e ações culturais na periferia, se tornou movimento de grande proporção. Sua produção literária tem sido lida e estudada dentro e fora do país, atravessando pontes e derrubando preconceitos. Com uma lista de autores que já foi a França, Alemanha, Estados Unidos para apresentar livros, palestrar em universidades, participar de competições, o movimento tem ganhado apoio por meio de financiamentos públicos. O mercado editorial também está se abrindo para esse novo núcleo de produção escrita.
“A produção literária oriunda das margens econômicas e sociais é uma novidade importante na conjuntura recente da literatura brasileira e desperta interesse por suas características estéticas, perfis dos autores, estratégias de produção e circulação. A partir dessas singularidades se pode pensar o lugar de produtos e produtores periféricos, no sentido de se refletir sobre as rupturas, inovações e continuidades com relação a outros movimentos, gerações, grupos e obras”, afirma a antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, autora do livro Vozes Marginais na Literatura.
Segundo sua pesquisa de doutorado sobre o tema na Universidade de São Paulo (USP), o fenômeno se concretizou como movimento artístico e literário a partir de 2001, com a publicação de textos em três edições especiais da revista Caros Amigos, sob o título Literatura Marginal. Liderados pelo escritor Ferréz, morador do Capão Redondo e autor de Capão Pecado, obra que o tornou reconhecido no mercado editorial, os participantes das publicações eram em sua maioria moradores de bairros periféricos, integrantes de grupos de hip hop e movimentos sociais, além de presidiários, índios e outros grupos “marginais”.
O editorial escrito por Ferréz para a edição de 2001, o primeiro manifesto do movimento, explicita que a missão do projeto era “certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história e não fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura”.
Inspirados em autores como Plínio Marcos, Solano Trindade e Carolina de Jesus, esses escritores tinham intenção de se tornar porta-vozes de grupos excluídos socialmente, portanto, em situação de marginalidade. Os textos possuíam em comum a temática da realidade dos bairros pobres, favelas, a exposição à violência, denúncias sociais e, sobretudo, uma oposição aos sistemas e políticas que contribuíam para que condições de desigualdade se perpetuassem.
Ferréz, na época o autor mais reconhecido do grupo, é um dos que também mais se destaca internacionalmente até hoje. “A literatura marginal está passando por um momento brilhante. Em vários países que a gente foi, a gente teve espaço, está sendo uma coisa bem construtiva. Acabamos de voltar do México, também fizemos um evento em Bogotá. Vários países estão abrindo as portas. Fui para os Estados Unidos, na Brown University, com o Allan da Rosa, para a França com o Rodrigo Ciríaco. É sempre bom estar com escritores da mesma classe, da mesma ideologia”, afirma.
Apesar das oportunidades de mostrar seu trabalho no exterior, Ferréz considera que no Brasil há ainda dificuldades a superar. “A gente enfrenta quem comanda o mercado editorial, a representatividade, que, infelizmente, é a elite. Mas estamos falando para o povo, a gente tem a ascese de agradar a população.” A forma que o escritor propõe para garantir o espaço da produção periférica no país é combativa. “Não tem outro caminho a não ser cavar trincheira, e o estamos fazendo há 15 anos. Se a história é nossa, deixa que nóis escreve.”
Periferia no centro
A pesquisa de Érica Peçanha destaca que, em um segundo momento, as publicações nas revistas foram encerradas, mas em São Paulo se intensificaram encontros com o objetivo de promover a poesia na periferia. A partir de iniciativas de alguns escritores e grupos culturais, disseminou-se a realização de saraus, eventos nos quais são declamadas poesias, apresentações de cenas dramáticas, grupos musicais, além de críticas sociais e manifestações políticas. Os saraus se proliferaram nos confins da cidade, e a literatura se tornou viva em bares, espaços culturais, escolas e bibliotecas. Liderado pelo poeta Sérgio Vaz, o Sarau da Cooperifa (de Cooperação Cultural da Periferia), acontece todas as quartas-feiras no Bar do Zé Batidão no Jardim Guarujá, em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo. E já chegou a atrair 500 pessoas em um único dia.
No Manifesto da Antropofagia Periférica de Vaz, estão expostos os princípios dessas atividades: “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor”, diz o manifesto divulgado durante a 1ª Semana de Arte Moderna da Periferia, em 2007. O sucesso estimulou coletivos culturais de outras regiões periféricas a criar saraus nesses locais, e hoje estima-se que mais de 50 sejam realizados regularmente.
A prefeitura de São Paulo tem incluído os saraus em programas de financiamento público, na programação da Virada Cultural e, recentemente, convidou alguns coletivos a compor a lista de convidados de honra da cidade na 40ª Feira do Livro de Buenos Aires, realizada entre 28 de abril e 12 de maio. Em parceria com a organização da feira, o município possibilitou a viagem e participação de representantes de 15 saraus de diferentes regiões.
“A gente está dando um passo grande, cria um fortalecimento. Ajudar na autoestima dos poetas; às vezes não somos reconhecidos, falam que é coisa de vagabundo, mas aí você está fazendo poesia, sendo valorizado, indo pra fora do Brasil. Um reconhecimento, uma conquista, um conjunto de forças que o sarau tem”, afirma Robson Padial, conhecido como Binho, poeta e organizador do sarau que leva seu nome, na região do Campo Limpo e Taboão da Serra, município vizinho, a sudoeste da capital paulista.
“O brasileiro não circula, sempre circulou a classe média, mas o povo mesmo dificilmente consegue sair do Brasil, de São Paulo, que é um gueto danado. A América Latina precisa se conhecer”, acredita Binho, que já realizou com outros poetas o projeto Donde Miras, uma expedição artística por países da América do Sul.
“Nunca vi do hip hop, do samba, nem de nenhum outro movimento cultural terem saído tantas pessoas pra outro país, talvez nem pra outro estado. Ver tanta gente saindo ao mesmo tempo do Brasil é muito inédito”, entusiasma-se Alessandro Buzo, que organiza o Sarau Suburbano, no bairro do Bixiga (a Bela Vista, na região central da capital paulista), e o projeto Favela Toma Conta, no bairro do Itaim Paulista, zona leste.
“O movimento dos saraus é um só, cada um tem sua particularidade, mas o movimento é único. Ir para Buenos Aires fortificou os coletivos, diminuiu as distâncias que lá em São Paulo a gente tinha.”
“Foi a primeira vez que artistas oriundos das camadas populares predominaram na delegação cultural do país em um evento internacional. Isso é muito significativo, especialmente porque esses artistas estão interessados em elaborar esteticamente suas experiências sociais e em desenvolver uma atuação que amplie o acesso a bens e produtos culturais, especialmente nas periferias urbanas”, acredita Érica Peçanha.
“O Estado precisa contribuir vendo a cultura como formação para a cidadania. As editoras comerciais só investem nos autores que já conhecem”, afirma a pesquisadora argentina Lucia Tennina, graduada em Letras e mestre em Antropologia Social. Lucia estudou a produção literária da periferia de São Paulo, onde morou por mais de um ano, e também traduziu autores para o espanhol, como Ferréz, participou da organização da feira, convidando os saraus, recebendo os artistas, colaborando com a programação de atividades dos coletivos. “Não digo que a escrita da periferia é a mais representativa do Brasil, mas é importante que debrucemos sobre ela para refletir sobre o que é literatura”, pondera.
“Eles (os estrangeiros) se interessam mais pela literatura da periferia do que as que têm mais respaldo europeu, pelas gírias, o jeito de falar, de se expressar na poesia, de falar literatura, pela oralidade. Tem mais a ver com o país do que essa enrustida que o cara fica pesquisando a francesa para copiar. Eles veem com mais propriedade, acham que tem mais a cara do Brasil”, garante Ferréz.
O autor, no entanto, verifica que em outros países também existem movimentos semelhantes. “Aonde a gente vai tem gente produzindo literatura marginal, gente oprimida que quer fazer um texto diferente e que não participa do mercado editorial.”
Alessandro Buzo também encontrou semelhanças entre os bairros periféricos de São Paulo e os da capital da Argentina, que fizeram parte do roteiro dos saraus durante a Feira do Livro. “As periferias daqui da Argentina são muito parecidas com as de lá, as pessoas são felizes apesar das dificuldades, que talvez sejam maiores que as do Brasil, mas eles estão lutando pra progredir. Periferia é periferia em qualquer lugar do mundo.”
Rede Brasil Atual
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