Renata Valério de Mesquita
No mundo acelerado, conectado e deslumbrado, um dos maiores escritores brasileiros, Milton Hatoum, respeita um ritmo mais lento, convida a pensar no lazer e vê a literatura como “uma página de resistência" à banalidade.
Numa edícula no bairro de Pinheiros, onde quase não se escuta o barulho das ruas de São Paulo, um dos maiores escritores brasileiros da atualidade encontra tranquilidade para escrever livros, colunas para o jornal O Estado de S.Paulo e palestras ministradas Brasil afora. Apesar dos muitos compromissos, Hatoum não gosta de fazer nada com pressa. “Nesse aspecto, sou profundamente amazônico. Nunca fui um entusiasta do trabalho produtivo”, afirma.
O primeiro romance de Milton Hatoum foi publicado quando tinha 37 anos. O escritor teve a oportunidade de começar antes, mas não se sentia preparado. Quase tudo que escreveu aos 20 e poucos anos foi parar no lixo, mesmo tendo o aval de escritores como Nélida Piñón.
Quando começou a publicar, entretanto, deixou claro a que veio. Os quatro livros de ficção publicados por Hatoum até agora receberam um Prêmio Jabuti: Relatos de um Certo Oriente, título com o qual estreou em abril de 1989, competiu com livros de Lígia Fagundes Telles e João Ubaldo Ribeiro e ganhou o 1o lugar; o segundo livro, Dois irmãos (3o lugar do Jabuti 2000), permitiu ao autor passar a viver da literatura; depois, vieram Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), também aclamados com o 1o e o 2o lugar do Prêmio Jabuti, respectivamente.
Neste mês de maio Milton Hatoum será o autor homenageado da XVIII Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém, no Pará. E em março passado, ele recebeu mais um prêmio bastante especial: outro renomado autor brasileiro, Luis Fernando Veríssimo, revelou, no palco da segunda edição de 2014 do evento Primeira Página, em São Paulo, ser Hatoum seu escritor vivo preferido.
Você saiu de Manaus aos 15 anos. Há mais de 20 anos está em São Paulo. Por que seus romances focam Manaus?
Porque meu passado é lá. Minha relação com a infância e a juventude sempre foi muito forte, porque é nesse período que você descobre o mundo, que vivencia os primeiros traumas, alegrias e decepções. Eu tentei escrever sobre a década de 1970 antes, mas não deu certo, era muito recente. Daí virou crônica jornalística e eu joguei fora. Só estou conseguindo escrevendo agora. Vai se passar em Brasília e São Paulo, mas não sei quando vou terminar. Eu preciso desse distanciamento. Não escrevo sobre coisas imediatas. Mas, como estou envelhecendo, estou vivendo literalmente na infância dos 20 anos.
Além do distanciamento cronológico, você precisa de distanciamento físico?
Não, nem sempre. Parte do meu primeiro romance foi escrita em Manaus mesmo. Não foi um problema. A melhor coisa que fi z para poder terminar aquele livro foi sair do Brasil. Porque, nessa época, a ditadura estava matando gente. Consegui uma bolsa para estudar língua e literatura espanhola. Peguei minhas coisas e fui embora em 1979. Primeiro Madri, depois Barcelona. Em seguida, morei três anos na França. A distância ajuda, permite ver com mais liberdade o teu lugar, as tuas origens. Ajuda a deixar a memória menos nítida. Para a imaginação é melhor que você se distancie.
Como foi a volta desse autoexílio na Europa?
Quando voltei para Manaus, em 1984, vi minha cidade ser destruída. A Manaus da minha infância era uma cidade que vivia em harmonia com a natureza. O projeto da cidade estava integrado aos rios, aos igarapés, à floresta. Isso acabou nos anos 1970. E só piorou desde então. A ocupação foi totalmente bárbara. Mas os ecologistas só pensam na floresta. Eles deveriam pensar nas cidades da Amazônia. Falar da destruição das cidades é falar também da degradação humana e da natureza. Mais de 70% da população da Amazônia mora em cidades, não na floresta. É na cidade que está o maior desastre humano. O grande sofrimento não é o do mogno, mas das crianças de Manaus, Belém, Porto Velho. Os verdes só falam do ambiente, é uma cegueira.
A que você atribui essa destruição?
À desfaçatez e à burrice dos homens públicos, à ganância e à ignorância dos empresários da Zona Franca de Manaus. Eles trabalham em conjunto e são os responsáveis por esse desastre. A Zona Franca enriqueceu muita gente, mas criou uma cidade difícil de viver, hostil, sem áreas verdes, sem calçadas, sem infraestrutura na periferia, uma cidade caótica. Uma cidade quente, de clima equatorial e sem árvores. Lá você não anda na sombra como em Belém do Pará. O centro histórico foi devastado. Só os ícones ficaram de pé: o Palácio da Justiça, o Teatro Amazonas e alguns casarões. Eu vivi isso. Começou um pouco antes de eu voltar da França, mas a ferocidade veio nos anos 1980 e 1990. Hoje eles construíram um estádio de futebol monumental numa cidade miserável. Como se fosse o grand finale do cinismo e da desfaçatez.
Você se sente um divulgador de uma realidade do Norte pouco falada?
Às vezes me fazem perguntas como se eu fosse porta-voz intelectual ou artístico da região. Não sou nada disso. Por acaso nasci lá. Tenho uma relação profunda com Manaus, como tenho com São Paulo, onde moro há 25 anos. O que existe às vezes – e acho muito legal – é que jovens leitores vão a Manaus depois de ler um dos meus romances. Muitos mandam e-mails para editora ou para mim. Me fazem lembrar a minha juventude, quando eu fui leitor do Graciliano, do Erico Verissimo e do Jorge Amado e quis conhecer os lugares de que falavam nos livros. Aquilo foi uma espécie de estímulo para minha imaginação. Nem havia tevê em Manaus. A literatura tinha muito mais força. Porque era uma possibilidade de conhecimento cultural. Eu achava que o Brasil se esgotava em Manaus, e não é verdade. O Brasil não se esgota no nosso lugar de origem.
Seu primeiro livro foi publicado quando você tinha 37 anos. Como era sua relação com a escrita antes disso?
Meu primeiro romance foi tardio, mas meu primeiro livro foi escrito em 1978, Amazônia: Um Rio entre Dois Mundos, com três fotógrafos daqui de São Paulo. Fizemos uma exposição na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), onde me formei, e depois publicamos. Também participei da edição de uma revista artesanal na FAU, chamada Poetação. Foi efêmera, como tantas da época. Mas eu queria ser poeta. Quando morei em Brasília (dos 15 aos 18 anos) escrevi poemas. Ganhei um prêmio na escola com um deles e o Correio Brasiliense publicou. Eu tinha 16 anos. Também escrevi contos na década de 1970, e mandei para a Nélida Piñón. Ela gostou, mas não publiquei nada. Daquela época, joguei tudo fora. Ela foi gentil, mas eu não estava pronto. Demorei para começar a carreira de escritor, porque tinha algumas exigências, que eram só minhas. Antes de publicar o primeiro livro, eu queria ler muito e amadurecer. Se você publica com 20 e poucos anos, geralmente são textos imaturos.
Quando passou a viver da literatura?
Com o Dois Irmãos (em 2000). Esse livro me libertou, foi uma alforria. Foi logo traduzido para 15 idiomas. Alcançou um público muito signifi cativo para os padrões brasileiros. Foi – e ainda é – muito trabalhado nas escolas. Ele e o Cinzas do Norte são os meus romances mais lidos.
Todos os seus livros receberam o Prêmio Jabuti. Você escreve pensando em prêmios?
Não, imagina! Quando escrevi o Relatos de um Certo Oriente, eu nem sabia o que era prêmio literário. Acho que, no geral, os escritores não pensam no prêmio quando escrevem. Nem no leitor. O leitor é uma abstração. Como eu vou saber quem são esses 140 mil leitores do Dois Irmãos?
Você é um escritor disciplinado?
Eu venho para esta edícula porque é um refúgio. É um espaço mínimo, mas é muito para quem mora numa gaiolona de um apartamento. Adoro essa romãzeira aí (aponta o jardim). Até plantei uma açaizeira do lado. Com o Oriente e a Amazônia, eu fico em casa. Mas não tenho horário pra escrever. Venho cedo e geralmente escrevo toda manhã, quando o santo baixa. Quando não estou bem, não consigo escrever. Prefiro ler. Eu sou movido por essas explosões, não tenho horário fixo. Almoço com meus filhos (de 10 e 6 anos) e minha mulher. Quando estou em transe aqui, nem almoço. Mas, mesmo assim, sou muito lento. Não sou confiável para cumprir prazos. Minha coluna no Estadão era quinzenal, mas daí fiquei angustiado (ri, acanhado) e virou mensal. Na realidade, não gosto de fazer nada com pressa, na minha vida e no meu trabalho. Nesse sentido, sou profundamente amazônico. Agora Manaus virou uma cidade industrial. Acho que a Zona Franca castrou a contemplação e a preguiça amazonense. Nunca fui um entusiasta do trabalho produtivo, de trabalhar o tempo todo. Acho isso uma miséria. As pessoas estão morrendo de tanto trabalho.
São Paulo é o templo dessa cultura.
E olha que cidade linda! É uma das metrópoles mais feias do mundo. Uma arquitetura horrorosa, a arquitetura do desastre. A ditadura criou muitos horrores, até na questão urbana. Privilegiou o carro. Os prefeitos eram todos biônicos, militares ou indicados por eles. Os arquitetos mais medíocres foram chamados para projetar as cidades. O lema nazista nos campos de concentração era: “O trabalho enobrece”. As pessoas deveriam pensar nisso. Pensar mais no lazer, na preguiça, porque nesse tipo de capitalismo brasileiro, todos vão enlouquecer. Já estão enlouquecendo. E não é só o trabalho, é a cultura da celebridade, do narcisismo e da banalidade. Tudo está mais banal. A televisão é um horror. A literatura é uma página de resistência no meio de tanta banalidade.
Órfãos do Eldorado foi filmado por Guilherme Coelho e deve ser lançado neste ano. Relato de um Certo Oriente está sendo adaptado por Eduardo Gomes. Você participa das adaptações cinematográficas?
Não, de nada. Bem, fui a Belém e fiz uma ponta de 30 segundos, mas vou pedir para ser cortado. Me sinto ridículo contracenando com o Daniel de Oliveira. Ele é um monstro, um grande ator.
Mas o resultado não o preocupa?
Mais do que uma adaptação, o cinema é uma tradução. Para usar um termo pedante dos concretistas é uma “transcriação”. É outra linguagem. Eu não quero ver nos filmes os meus livros, tais como são. O que for, será. Não posso fazer nada. Os diretores são competentes e talentosos. Eu não sou muito ansioso. Não fico em cima, telefonando. Escrever já dá muito trabalho. Se eu for me preocupar também com os filmes enlouqueço. De qualquer jeito, o leitor que gosta de literatura não vai deixar de gostar do meu livro.
Controvérsia
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