quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A financeirização da saúde


Patricia Fachin

“A saúde movimenta uma parcela considerável da economia mundial. (…) Ora, essa grande indústria pode ser de medicamentos, de marca-passo, de prótese de quadril, de pinças cirúrgicas, de cateter urinário, de máquinas de tomografia. O que se quer é que se consuma o quanto mais”, afirma o médico Luiz Vianna Sobrinho.

A medicina exercida nas últimas décadas pode ser definida como “gestão contábil da saúde”. É a partir dessa ótica que o médico Luiz Vianna Sobrinho, autor do livro Medicina Financeira: a ética estilhaçada (Rio de Janeiro: Garamond, 2013), chama a atenção para a “mercantilização” da saúde no Brasil. “Médicos são acompanhados por seu desempenho pelas operadoras de planos de saúde, os hospitais idem e, assim, os pacientes também. Seus riscos, antes mesmo de surgir qualquer doença, são acompanhados e ‘tratados’. (…) Pacientes são negociados em carteiras, como ações. Patologias são precificadas como commodities. E a medicina baseada em evidência é que vem em busca de dar certificação a esse mercado”, denuncia o médico, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Vianna Sobrinho ressalta que, durante os governos Collor e Fernando Henrique, a saúde deixou de ser uma “atividade essencial do Estado” e foi entregue à iniciativa privada. “Ainda não houve um retorno dessa política em outro sentido. Logo, o que o Estado vem fazendo com o SUS é quase que o colocando como um apanágio para quem não consegue pertencer ao mercado de saúde”, lamenta.

O médico também comenta temas polêmicos que estiveram em pauta no último ano, como a luta pela Lei do Ato Médico e o Programa Mais Médicos. Para ele, a vinda de médicos estrangeiros para o Brasil tenta solucionar uma “crise aguda” na área da saúde. Trata-se de “uma grande vitrine em ano eleitoral, mas talvez se torne uma grande vidraça, como já começamos a perceber. Há inúmeros pontos frágeis, e o resultado a longo prazo me parece muito incerto”, pontua.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – É possível traçar um perfil do exercício da medicina no Brasil?

Luiz Vianna Sobrinho - Eu penso que sim, como uma caricatura. A medicina ‘tupiniquim’ guarda algumas semelhanças com outras questões nacionais, como a educação ou distribuição de renda. Há imensos contrastes, e essa talvez seja a sua marca. Acho que teríamos um perfil mais uniforme se fôssemos falar da medicina inglesa, francesa, portuguesa ou chilena. De uma forma geral, sabemos que a educação médica no Brasil tenta se espelhar na medicina norte-americana. A prática profissional tenta seguir os mesmos preceitos daquela prática liberal; o grupo da saúde pública bebe de outras fontes, do modelo inglês e francês, principalmente. Mas a variedade de práticas que vemos no nosso território é muito grande. Penso sempre na imagem do ‘Ornitorrinco’, do sociólogo Chico de Oliveira. Numa mesma cidade, como o Rio de Janeiro, por exemplo, circulamos entre mundos diferentes todo o tempo; a poucos quilômetros um do outro, às vezes na distância de algumas quadras. O que mais me espanta, no entanto, é que o médico também se metamorfoseia e muda sua relação com o paciente, enquanto ‘pula’ entre este ou aquele serviço, entre o público e o privado.

IHU On-Line – Por que as condições de saúde no Brasil são precárias? O que isso significa em termos de atendimento médico, tratamentos, atenção à saúde? Essa precarização da qual o senhor fala se estende a toda a medicina?

Luiz Vianna Sobrinho - O tema saúde é muito amplo. É político, é sociológico. Eu fiz um corte nesse tema e busquei olhar para a medicina, dentro deste momento da nossa história. Assim, as condições de saúde são precárias na mesma proporção e regionalidade que as condições sociais totais também o são. Temos o melhor hospital da América Latina e locais que precisam do Programa Mais Médicos. Somos um dos líderes mundiais em rankings de desigualdades.

Luiz Vianna Sobrinho é médico cardiologista. Foto: O Dia

IHU On-Line – Quais as principais mudanças evidenciadas na atividade médica nos últimos anos e a que atribui tais transformações?

Luiz Vianna Sobrinho - Aqui eu teria que fazer um resumo rápido de todo o meu livro. Então, com relação à atividade médica, eu diria que há duas ou três décadas a explosão da tecnologia era a grande mudança na área médica e também o que mais influenciava a relação entre o médico e o paciente. Nas últimas décadas, a explosão foi da informação e da sua assimilação pelo mundo da gestão, da burocracia, do controle financeiro pelo mercado da atividade médica. Esse é o tema do meu livro.

IHU On-Line – Em seu livro, utiliza o termo “desatenção cortês”. Por que essa parece ser uma das principais características dos médicos?

Luiz Vianna Sobrinho - É uma expressão do sociólogo Erving Goffman, uma caracterização da ambiguidade do atendimento nos nossos tempos, em que se busca dar confiabilidade ao contato, mas, ao mesmo tempo, afastando-se de uma relação de maior intimidade. É a situação em que diríamos: “me atendeu de forma burocrática”. Os médicos que vendem seus serviços como um objeto de consumo a ‘clientes’ tendem a se comportar dessa forma. Diferentemente daqueles que permanecem com o entendimento de um paradoxo para o qual nos chama a atenção o filósofo Paul Ricoeur — de que embora a medicina tenha um preço e custos para a sociedade, a pessoa não é uma mercadoria e a medicina não pode ser um comércio.

IHU On-Line – O que senhor entende por medicina financeira? Que modelo de medicina existe em contraposição a essa?

Luiz Vianna Sobrinho - É a medicina que estamos percebendo nas últimas décadas. Poderíamos falar do biopoder, como em Foucault e Agamben, mas essa questão não é novidade, vem de muito tempo. Atualmente, prefiro a expressão do Gaulejac, de “gestão contábil da saúde”. Hoje, é mais disso que se trata. Médicos são acompanhados por seu desempenho pelas operadoras de planos de saúde, os hospitais idem e, assim, os pacientes também. Seus riscos, antes mesmo de surgir qualquer doença, são acompanhados e “tratados”. A bioestatística é utilizada como um instrumento de avaliação e seleção de populações, seja para intervenção terapêutica, seja para contratação de seguros. Pacientes são negociados em carteiras, como ações. Patologias são precificadas como commodities. E a medicina baseada em evidência é que vem em busca de dar certificação a esse mercado.

Penso que exista ainda muita prática de uma medicina mais sábia, voltada ao indivíduo de cada atendimento.

IHU On-Line – Em que consiste o paradoxo no Complexo Econômico-Industrial da Saúde?

Luiz Vianna Sobrinho - A saúde movimenta uma parcela considerável da economia mundial. Podemos pensar que na ponta final desse processo está um paciente que utiliza algum insumo prescrito ou indicado por um profissional da saúde, que pode ser um médico. Ora, essa grande indústria pode ser de medicamentos, de marca-passo, de prótese de quadril, de pinças cirúrgicas, de cateter urinário, de máquinas de tomografia. O que se quer é que se consuma o quanto mais. Os hospitais são um dos principais pontos de venda. Mas a ascensão do financiamento privado da saúde por meio dos planos e seguros trouxe um contraponto a esse consumo. O interesse aqui é na contenção do consumo, nas medidas de controle. E o mercado se equilibra, ou não, nessa disputa de consumo e controle. É notória a compra de ações da indústria farmacêutica americana pelos mesmos grupos financeiros que controlam os maiores seguros de saúde; tal concentração e onipresença é típica do capitalismo financeiro.

IHU On-Line – Qual a relação entre a indústria farmacêutica e a atuação médica no Brasil?

Luiz Vianna Sobrinho - No início de 2012 o Conselho Federal de Medicina iniciou uma maior regulação da premiação dos médicos a partir de suas prescrições em receituário; após um certo recuo, acabou deixando brechas. Na prática, penso que pouco mudou. Ainda são frequentes as viagens, inscrições e passagens para congressos, almoços, etc. A prescrição de medicamentos com princípios já conhecidos, mas sob novo nome, é um dos grandes engodos já comprovados. No entanto, hoje, o pagamento em dinheiro é mais escandaloso e frequente na área de insumos, como próteses e outros materiais de alto custo. Aí a coisa fica mais séria e rentável. É em dinheiro. São somas mais vultosas.

IHU On-Line – Em seu livro, o senhor faz uma crítica à omissão da publicação de resultados de certas pesquisas médicas que não favoreçam determinado medicamento ou droga analisada, além da interferência de empresas farmacêuticas em resultados de pesquisas que favorecem a utilização de determinadas drogas. Como e por que ocorre esse processo? Trata-se de uma prática mundial? Pode mencionar algum exemplo?

Luiz Vianna Sobrinho - A crítica foi feita, com ampla divulgação, pela Dra. Marcia Angell, da Universidade de Harvard, que durante mais de uma década foi do corpo editorial da mais antiga e prestigiada revista de medicina clínica do mundo, The New England Journal of Medicine. Ela estava no centro do mundo da divulgação de pesquisas na área médica. No livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, lançado no Brasil em 2007, ela disseca toda a força e poder dessa indústria nos Estados Unidos. No meu texto eu faço apenas um pequeno resumo, onde percebemos que o processo se inicia na pesquisa, nas universidades; atravessa os ajustes na regulamentação da FDA (a agência de controle de medicamentos nos EUA); penetra nos políticos do Congresso; envolve os médicos e, por fim, a grande mídia, onde circulam livremente as propagandas de drogas e terapias. O exemplo mais famoso e recente foi o do mundialmente conhecido anti-inflamatório Vioxx®, que foi comercializado por algum tempo, mesmo após vários alertas de seu risco de aumentar as mortes por infarto. Até mesmo a FDA esteve sob suspeita de envolvimento no evento. Era um líder de mercado, com vendas mundiais na casa dos bilhões de dólares. Acabou sendo proibido e restaram muitos processos e indenizações.

IHU On-Line – As políticas de saúde do Estado brasileiro em relação ao SUS e aos planos de saúde são consideradas antagônicas?

Luiz Vianna Sobrinho - Não me parecem. Ao contrário, todo o crescimento do segmento privado de seguros e planos de saúde se deu no espaço deixado pelo Estado, com a redução do investimento em sua rede de hospitais desde a década de 1980 e o subfinanciamento do SUS, a partir da década de 1990. Sob o comando dos governos Collor e Fernando Henrique, retirou-se a saúde como atividade essencial do Estado, que, segundo a cartilha neoliberal do ministro Bresser Pereira, deveria ser entregue à iniciativa privada. Caberia ao Estado apenas regular o mercado e fiscalizar a compra de serviços. Ainda não houve um retorno dessa política em outro sentido. Logo, o que o Estado vem fazendo com o SUS é quase que o colocando como um apanágio para quem não consegue pertencer ao mercado de saúde.

IHU On-Line – Concorda que há uma articulação do governo federal com o setor de planos de saúde por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, a qual fortalece os planos de saúde e enfraquece o SUS?

Luiz Vianna Sobrinho - Não vejo dessa maneira. Podemos criticar a Agência por outras questões, talvez, pelo estímulo à concentração em grandes grupos, por privilégios em avaliações, salvamentos suspeitos de alguns planos. Mas a opção federal de não fortalecer o SUS me parece anterior e continuada, justamente com o subfinanciamento do sistema público. E isso é obra de todo o governo, das forças que comandam o Congresso, principalmente. A agência foi criada para regular o mercado de saúde privada, que existe e está crescendo. Podemos dizer que a política de saúde da última década estimulou esse modelo. E isso não é uma crítica de oposição, mas de insatisfação de todos que pensam em saúde pública. Ela pode ser vista no próprio livro organizado pelo insuspeito Emir Sader, lançado em 2013, com um balanço dos dez anos de governo do PT — Lula e Dilma, dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. O capítulo sobre a saúde, escrito pela professora Ana Maria Costa, é o mais crítico, de maior descontentamento.

IHU On-Line – Qual sua posição em relação ao Ato Médico?

Luiz Vianna Sobrinho - A medicina não é dos médicos. É da cultura da sociedade. Penso que, antes de qualquer coisa ou detalhe, o que está se discutindo são demarcações de poder. É uma briga de corporações profissionais. Ninguém está realmente olhando o problema do ponto de vista do paciente. Parece-me mais uma disputa de sindicatos. O texto traz demarcações que me parecem hilárias, como os limites de derme e epiderme para a atuação deste ou daquele profissional, mas permitindo as injeções e cateterizações que o médico já “deixa” que outros façam. O Estado tem de pensar na saúde de todos e deve ser orientado pela necessidade da terapia e da capacitação técnica para oferecê-la. O que eu temo é que seja o deus-mercado quem demarque esses limites, pela questão do custo do profissional.

IHU On-Line – Como avalia o Programa Mais Médicos implementado no país?

Luiz Vianna Sobrinho - Com estranhamento, desde o início. No começo de 2013, a maior “novidade” do governo federal na saúde foi a sinalização de um novo pacote de isenção fiscal para grandes planos de saúde de mercado, que assumiriam, com modelos mais baratos de assistência, os 40 ou 50 milhões de pessoas que estavam “entrando” no mercado de consumo, saindo da linha da pobreza. Então, parecia assim: a casa própria, eletrodomésticos de linha branca, telefones celulares e… plano de saúde. O ministro da saúde, à época já lançado como candidato ao governo do estado de São Paulo, reuniu-se com diretores do grupo Amil e Qualicorp e a notícia veio a público, mobilizando forte reação dos sanitaristas e entidades de saúde coletiva, como a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] e o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde]. O governo recuou publicamente. Por sua vez, as entidades de defesa e regulamentação da atividade médica no país permaneciam no combate diário pelo reajuste na tabela de remuneração e honorários dos planos de saúde e na luta pela Lei do Ato Médico. Onde estavam as prioridades dos outros três quartos da nação sem plano de saúde?

Bem, após as manifestações que dividiram o ano em dois, parece que mudamos um pouco de país e de prioridades. O governo anuncia um programa com características de uma solução de crise aguda. Em um país continental, com 200 milhões de habitantes e quase 400 mil médicos, que comprovadamente tem um dos menores gastos públicos per capita com saúde na América (gastamos menos que Argentina, Chile, México e Colômbia e muito menos que Cuba, Canadá e EUA), o governo contrata uma “força-tarefa” de médicos estrangeiros, por um tempo determinado. Sob um regime trabalhista diferenciado, com violação das normas da prática da profissão no país, e uma postura litigiosa e de afastamento em relação às entidades oficiais e legítimas da prática da medicina no país. Será uma grande vitrine em ano eleitoral, mas talvez se torne uma grande vidraça, como já começamos a perceber. Há inúmeros pontos frágeis, e o resultado a longo prazo me parece muito incerto.

IHU On-Line – Como vê a medida do Estado brasileiro de exigir que médicos formados a partir de 2015 sejam obrigados a atuar durante dois anos no SUS?

Luiz Vianna Sobrinho - Acho coerente que isso aconteça com as faculdades e universidades públicas. O Estado tem o dever de planejar e distribuir os profissionais que são formados com o esforço conjunto da sociedade. Isso já deveria ser assim há mais tempo. O que vemos hoje são as titulações das melhores instituições públicas estampadas nos receituários dos consultórios privados, assim como a dupla, tripla vinculação e chefia de serviços públicos e privados simultaneamente.

Envolverde

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