Vladimir Safatle
A esta altura, todos conhecem a história do rapaz negro amarrado nu em um poste e espancado por populares no Rio de Janeiro por pretensamente ser um assaltante e ter supostamente roubado uma bicicleta. Todos devem conhecer também o teor dos comentários de certos apresentadores do noticiário televisivo que resolveram surfar na onda da mais nova modalidade de "indignação popular contra a insegurança e a ausência de mão forte do poder público".
Mas, ainda mais surpreendente do que os dois acontecimentos, é o teor da reação monitorada na internet, em sua ampla maioria favorável ao velho "justiça feita com as próprias mãos" ou ao "chegou o momento da revolta do homem comum".
Quem já estudou a ascensão do regime nazista sabe como esse era o tema central de sua retórica política: "os homens comuns e cidadãos de bem estão cansados da insegurança. Está na hora de atitudes enérgicas".
E então apareciam dois tipos de personagens: os que saiam vociferando sua raiva canina e os que diziam que não concordavam exatamente com tais métodos, mas que deveríamos dar uma reposta sem angelismos ao problema. São aqueles que dizem, atualmente, que a sociedade brasileira sofre com tanta violência e merece parar de ser importunada com essa conversa de direitos humanos de bandido. Ou seja, o velho truque do policial mau e do policial bom.
As pessoas que amarraram o jovem negro no Rio de Janeiro não apareceram do nada. Seus pais já apoiavam, com lágrimas de felicidade nos olhos, os assassinatos perpetrados pelo esquadrão da morte. Seus avós louvaram as virtudes do golpe militar de 1964, que colocaria de vez a ordem no lugar da baderna. Seus bisavós gostavam de ver a polícia da República Velha atirando contra grevistas com aquele horrível sotaque italiano. Seus tataravós costumavam ver cenas de negros amarrados a postes com um certo prazer incontido. Afinal, já se dizia à época, alguém tinha que pôr ordem em um país tão violento.
Sim, tais pessoas sempre estiveram no mesmo lugar. Só mudaram as gerações. Não há como compreendê-las nem nunca haverá acordo possível com elas. Que acordo haveria com alguém que nem sequer é capaz de estranhar seus próprios gestos no momento em que espanca, arranca a roupa e amarra alguém em um poste? Ou com alguém que não teme em justificar ação tão nobre e edificante?
Contra pessoas desse tipo, não se procura um acordo nem se deve esperar que elas mudem. Luta-se contra elas, sem trégua, até que tenham medo de mostrar sua barbárie na rua e a escondam dentro de suas próprias casas.
Folha SP
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