Marxistas, radicais e socialistas fulgurados por Ratzinger. Artigo de Antonio Socci
Pela primeira vez, aparece em cena um grupo de intelectuais, de culturas e de filiações políticas laicas e muito diversas, que juntos se apropriam daquela reflexão ética que até agora caracterizou do discurso da Igreja.
A opinião é do escritor italiano Antonio Socci, diretor da Escola Superior de Jornalismo Radiotelevisivo de Perúgia e ex-vice-diretor do canal Rai2. O artigo foi publicado no jornal Libero, 01-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A tentativa de Ratzinger foi uma "tentativa heroica de conter a forma pós-moderna do Anticristo". Quem pronunciou essas palavras – em referência ao magistério de Bento XVI sobre os grandes temas éticos e antropológicos – foi um dos mais importantes pensadores marxistas dos nossos anos, Mario Tronti, ex-fundador teórico do operaísmo e engajado politicamente no PCI [Partido Comunista Italiano], depois no PDS [Partido Democrático de Esquerda] e no PD [Partido Democrático].
Surpreendente também é o lugar em que Tronti discursou, no sábado, 26 de outubro. Tratava-se da nona edição dos"Encontros de Norcia" da Fundação Magna Carta.
O evento, de fato, girava em torno de dois textos de inspiração ratzingeriana: o "Manifesto di Norcia", lançado em 2011 por Gaetano Quagliariello, Eugenia Roccella e Maurizio Sacconi, que pretendia falar para a centro-direita; e o manifesto dos chamados "marxistas-ratzingerianos", escrito por Giuseppe Vacca, Mario Tronti, Pietro Barcellona e Paolo Sorbi que falava para a esquerda democrática.
O ponto de encontro de intelectuais tão diferentes por história e por filiação política é precisamente Joseph Ratzinger.
Seja a sua lição como verdadeiro gigante da cultura contemporânea, seja o seu magistério como Papa Bento XVI. De fato, o título do congresso deste ano foi "Ratzinger para além de Ratzinger".
Concordaremos que, em um país como a Itália, um simpósio desse tipo – além do mais, em nome do papa emérito – é um acontecimento excepcional. Que deveria causar alvoroço. Ainda mais quando se levam em conta as histórias pessoais dos protagonistas.
Quagliariello vem de uma militância radical e da cultura liberal. Maurizio Sacconi, do mundo do socialismo reformista. Eugenia Roccella foi uma militante radical e feminista (todos os três são parlamentares do PDL hoje).
Do outro lado, Giuseppe Vacca foi o historiador togliattiano do PCI e é presidente da Fundação Gramsci. Mario Tronti é – como eu disse – um dos maiores filósofos marxistas italianos e foi dirigente do PCI e parlamentar do PDS e hoje do PD; Pietro Barcellona (infelizmente recentemente falecido, mas que representou um pilar essencial dese grupo) foi um intelectual autoritário e deputado do PCI (em 2010, tornou pública a sua aproximação à fé católica).
Por fim, o sociólogo Paolo Sorbi se formou na famosa faculdade de sociologia de Trento, juntamente com Renato Curcio e Mara Cagol, portanto – da militância política e intelectual na esquerda – passou anos atrás ao catolicismo.
Como se vê, nenhum deles provém do tradicional associacionismo católico ou mesmo de áreas contíguas. Ao contrário, durante anos, todos militaram intelectual e politicamente em mundos opostos na Igreja.
Portanto, é surpreendente que eles se encontrem hoje na reflexão sobre o pensamento de Ratzinger e, especialmente, sobre aqueles temas que – nos últimos anos – mais caracterizaram os pronunciamentos do magistério católico.
Um apelo
Não que, nas últimas décadas, não tenha havido importantes intelectuais laicos e até marxistas que concordaram com a Igreja sobre os temas éticos mais ardentes. Em tendência contrária ao desvio radical e niilista feito pelas culturas dominantes.
Eu penso nas posições de Max Horkheimer – fundador da Escola de Frankfurt – contra a pílula, rejeitada na Humanae vitae de Paulo VI (justamente enquanto muitos intelectuais católicos começaram a discordar do papa).
Ou penso nas posições contra o aborto que, primeiro, Pier Paolo Pasolini e, depois, Norberto Bobbio assumiram. Ou no diálogo entre Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas.
No entanto, o encontro de Norcia representa uma grande novidade. Pela primeira vez, aparece em cena um grupo de intelectuais, de culturas e de filiações políticas laicas e muito diversas, que juntos se apropriam daquela reflexão ética que até agora caracterizou do discurso da Igreja.
E que, juntos, falam às diversas inclinações políticas disparando o alarme sobre a "emergência antropológica" que corre o risco de afundar a nossa civilização.
De fato, o congresso de Norcia concluiu-se com uma declaração conjunta de todas essas personalidades que deveria ser lida atentamente.
Nesta Itália dilacerada por uma espécie de guerra civil permanente, eles sentem a "necessidade na dimensão política de um humanismo compartilhado como foi projetado, para crentes e não crentes, pela tradição cristã e pela Constituição republicana".
Depois, eles sublinham que estamos dentro de "uma verdadeira emergência antropológica" e afirmam que "as funções de governo são investidas com responsabilidades em relação ao valor da vida, da família natural, da liberdade educacional, à luz também dos novos comportamentos sociais".
Eu sublinho, dentre outras coisas, o feliz ingresso do tema da liberdade de educação. Por fim, os signatários da declaração dirigem um apelo ao Parlamento.
"Convidamos o Parlamento a uma moratória legislativa sobre os temas eticamente sensíveis com o objetivo de substituir o conflito ideológico com a escuta recíproca entre defensores das diversas teses, em função de soluções unificantes e não divisivas da sociedade italiana. E convidamos os grandes partidos ue têm processos em curso de verificação interna, destinados a concluir-se emblematicamente no mesmo dia (8 de dezembro), que lidem com os temas antropológicos na busca de uma base ética comum da nação".
Parece-me um evento realmente significativo. Algo que deveria catalisar a atenção das mídias.
Em vez disso, acontece que personalidades tão influentes, de histórias tão significativa e distantes da Igreja, que hoje identificam no ensinamento do Papa Ratzinger o ponto de referência para se pensar o presente (em alguns casos chegando até à fé pessoal), passem totalmente despercebidas tanto das mídias laicas quanto do establishment clerical.
Os primeiros, muito comprometidos ao celebrar cotidianamente o nada, os segundos – penso no Átrio dos Gentios – muito ansiosos por se unir à escassez niilista das modas mundanas.
Uma Itália melhor
Porém, o caminho que levou esses dois grupos a Norcia é sério, é um percurso intelectual forte, profundo. E se enraíza nas culturas históricas deste país (o marxismo, o radicalismo, o socialismo e o liberalismo), que se encontram – surpreendentemente – naquele campo bimilenar que é o catolicismo.
Portanto, o seu apelo mereceria a atenção das mídias. Porque faz entrever realmente a possibilidade de uma Itália totalmente diferente. Não mais dilacerada pelos conflitos que hoje ocupam as páginas dos jornais, tão ferozes quanto culturalmente miseráveis.
Com inteligência, Giuseppe Vacca, na sua palestra em Norcia, captou a continuidade entre Ratzinger e o Papa Francisco na encíclica Lumen fidei, coescrita a quatro mãos pelos dois pontífices. Justamente partindo de uma passagem daquela encíclica, Vacca afirma o valor social e público da pregação cristã.
Se, de fato, "a idade moderna iniciou a partir do 'como se Deus não existisse', que acompanhava a emergência das guerras religiosas do Estado-nação europeu, que relegava as religiões a um espaço próprio (...) na conclusão do ciclo histórico do Estado-nação como sujeito hegemônico da modernidade, diante do risco da 'catástrofe antropológica', o 'como se Deus existisse' pode ser o princípio de uma nova aliança entre fé e razão? Se o conteúdo da fé", diz Vacca, "é o saber do amor, um saber que não se atinge a partir de nenhuma outra experiência, mas somente do reconhecimento do Outro, não é apenas historicamente justificado o papel público da religião, mas também é necessário que esse saber seja transmitido e ensinado".
Esta pode ser a aurora de uma verdadeira revolução cultural.
IHU Unisinos
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