Era uma vez um menino, um adolescente. Era um rapaz tímido, vivia com a mãe e os avós. Ele tinha sido registrado pelo pai, sua mãe dizia que não lembrava bem do pai dele, teria sido um namoro muito rápido, fugaz. O menino, em função de sua timidez e sua dificuldade de relacionamento com as pessoas, foi levado a uma psicanalista pelos avós. Contava a ela suas histórias poucas, que eram também ralas de cores e emoções. Com o passar do tempo, conversa vai, conversa vem, ele começa a dizer que fica muito intrigado com o fato da mãe nem sequer lembrar do pai – coisa bem esquisita, aquela! Estava na idade de começar a namorar, e essa história contada assim, meio sem nexo, não ajudava muito (por assim dizer) o menino a tornar-se homem. Ele começou a querer saber mais, perguntava com insistência para sua mãe – já não como uma criança tímida, mas sim como um rapaz em busca de suas origens, em busca de algo precioso. Ele perdeu o medo de mexer no abelheiro que era esse tema na família, ou pelo menos decidiu arriscar-se a tomar uma picada ou outra, em nome de descobrir uma versão melhorada da que tinha lhe sido oferecida. Ele se pôs a fazer uma verdadeira investigação sobre sua origem, traçando hipóteses de quem seria o seu pai. Colocou o assunto na roda, começando em suas sessões de análise, e seguindo família afora. Por alguma manobra das circunstâncias, ele precisou interromper o trabalho com a psicanalista, no meio da investigação.
Algum tempo mais tarde, ligou para ela querendo marcar um horário. Chegou ao consultório de posse de um álbum de fotografias e disse que tinha uma história pra contar, relatando os passos seguintes da investigação, desde que interrompera o trabalho analítico até aquele momento. E era uma história que ela não imaginara que chegaria a ouvir: ele tinha conseguido saber quem era seu pai e apresentou-se para ele, com todo o histórico de suas descobertas, como um detetive que, de pista em pista, chega ao sujeito que procura. O homem acolheu o rapaz e também seu percurso de descobertas, confiando que ele fosse mesmo seu filho. O então pai o recebeu, levou-o a sua casa, apresentou-o à família. E o rapaz, crescido, fez questão de contar à psicanalista o desfecho da história – porque era importante pra ele que ela fosse testemunha do término da investigação, que também ela conhecesse aquele desfecho e seus efeitos. Era importante pra ele compartilhar com ela seu reescrito, a nova versão da sua história – a versão de sua própria autoria.
O nome que é dado a alguém é exemplo disso. Encontramos na clínica, com frequência, efeitos surpreendentes advindos de uma singela pergunta sobre o nome próprio – é uma pergunta potente, da qual pode-se colher ideias sobre si e sobre sua história até então imperceptíveis. O que fazer com o nome que nos foi dado? O que esperam os pais ao atribuir nome a seu filho? Às vezes parece que não há muito a pensar sobre: é apenas um nome, pinçado entre tantos outros simplesmente por sua sonoridade, pelo seu tamanho, por sua complexidade ou simplicidade. Mas com frequência se descobre ser o nome de alguém que foi querido, ou idealizado – como os personagens de livros e filmes, atores, atrizes, figuras importantes da história, das mitologias, das religiões. Há os nomes de familiares, reproduzidos com o intuito de prestar homenagem a um ente querido, admirado, por vezes perdido. Aquele que herda o nome herda com ele a tarefa de honrar o nome que recebeu, tarefa nem sempre fácil de executar – quando não impossível.
O nome traz esperanças (ou desilusões – pior!) que, como o caldo, nos antecedem, são de outro tempo, de uma história da qual fomos convocados a fazer parte. Nesse ponto, o trabalho analítico tem muito a contribuir: ao contar a história podemos transformá-la, para além daquilo que foi determinado sem o nosso consentimento. Muito além? Talvez não tanto… mas, em se tratando de apropriar-se da direção da própria vida – na medida em que isso é possível – o deslocamento da posição de carona para a de motorista é sempre bem-vinda. José Saramago abre seu Todos os Nomes com a epígrafe: “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”. Conhecer o próprio nome é tarefa que demanda tempo, mas que certamente vale a pena – é apropriar-se de si.
Em uma cidade distante, vivia uma mulher que tinha uma grande amiga. Ela ficou grávida, e desejou estar à espera de uma menina, para poder chamá-la pelo mesmo nome da amiga. Assim sucedeu, e nasceu Helena. Porém, poucos anos depois Helena amiga adoeceu, partindo antes mesmo que Helena menina crescesse. Essa perda precoce causou imensa tristeza na mãe de Helena. Já adulta, em análise, Helena ainda lamentava a perda daquela de quem herdara o nome. Lamentava como se a tivesse perdido há pouco – e se pôs a perguntar por que esse sofrimento não a deixava, já que estava tão distante no tempo. Helena, contando sua história tantas e repetidas vezes, deu-se conta de que só mantinha raras memórias da Helena amiga, todas do seu tempo doente, todas da tristeza de sua morte. E então lhe ocorreu que podia, conversando com outras pessoas, perguntar sobre Helena: como era ela, do que gostava, como tinha sido antes que a doença chegasse. E Helena redescobriu Helena, e ao redescobri-la encontrou espaço para o seu nome – que lhe parecia todo novo. Como se tivesse, ela mesma, dois mesmos nomes: Helena amiga, nome do lamento, da morte, e Helena ela mesma, autora de uma história que começava a escrever, com tintas de alegria e leveza, Helena recém-nascida, plena de vida.
Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa nos presenteia com uma belíssima passagem sobre o tema do nome, quando Reinaldo (Diadorim) revela a Riobaldo seu verdadeiro nome: “Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele – foi como dissesse notícias do que em terras longes se passava. Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe.”
Sul 21
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