Aumento de renda não significa elevação social: “nós tivemos uma inserção social sem politização”
Patrycia Monteiro Rizzotto
Após deixar a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para concorrer à Prefeitura de Campinas (SP) em 2012, o economista Márcio Pochmann está agora à frente da Fundação Perseu Abramo, entidade do Partido dos Trabalhadores (PT), para desenvolver pesquisas e promover debates.
Autor dos livros A Década dos Mitos (ganhador do Prêmio Jabuti de Economia) e da série Atlas da Exclusão do Brasil, nesta entrevista ao Brasil Econômico Pochmann fala sobre o combate à desigualdade social – “Lula inverteu a lógica dos economistas, que diziam que a economia tinha de crescer para depois distribuir”. Diz que o Bolsa Família veio para ficar, impedindo que “o filho do pobre continue pobre porque o pai era pobre” e é crítico ao conceito da “nova classe média” e da falta de politização desse grupo ascendente: “20 milhões de trabalhadores conseguiram emprego no mercado formal, mas não foram para o sindicato”.
Patrycia Monteiro Rizzotto – No IDH de 2013, percebemos que o Brasil atingiu uma média alta de desenvolvimento, puxadas pelas regiões Sul e Sudeste. As políticas públicas para redução das desigualdades regionais não foram eficientes?
Márcio Pochmann – A desigualdade é uma marca de nosso país. Inclusive a literatura internacional usa o termo “abrasileirar” como característica de um processo de desenvolvimento com profunda desigualdade. Esse termo está perdendo sentido, os resultados mais recentes do Brasil vêm inclusive de forma contraditória ao que está ocorrendo no mundo. Estamos caminhando no sentido da redução da desigualdade, da pobreza e do desemprego, um fenômeno que não se observa nos outros países, principalmente nos países ricos. Mas a desigualdade é uma marca do desenvolvimento capitalista brasileiro.
Isso se deve às opções que o Brasil fez em função dos acordos políticos. A revolução de 30 e a contra-revolução de 32 na verdade representaram um acerto entre as elites, que terminou fundamentando a concentração geográfica do projeto urbano e industrial que criamos. Essa é uma marca estrutural que praticamente não foi enfrentada.
Por outro lado, temos observado sinais de descentralização do gasto público feito pela Constituição de 1988 e nos investimentos na década passada. Alguns especialistas identificam inclusive a construção de um novo regionalismo.
Desde 1870, onde São Paulo ia, o Brasil ia no mesmo sentido. Até os anos 70, foi o principal estado em produção industrial. Então, havia uma conexão muito forte entre a expansão econômica de São Paulo e a do Brasil. No entanto, a partir dos anos 80, sobretudo nos anos 90, há uma certa desconexão de São Paulo em relação ao Brasil, seja pelo processo de desindustrialização que o estado vive, seja pelos resultados que tem apresentado, porque é um estado que não consegue crescer tanto quanto o Brasil. Então há uma perspectiva de um novo regionalismo.
As regiões que mais vêm crescendo são o Nordeste e o Centro Oeste. O Norte tem tido um dinamismo maior e seus dados sociais também são significativos. Esse esforço que vem sendo feito reverte a trajetória de aprofundamento da desigualdade, mas ainda estamos muito longe de uma situação adequada.
Patrycia Monteiro Rizzotto – Mas tivemos uma melhora, não?
Márcio Pochmann – O Brasil nos anos 80 era considerado a oitava economia do mundo, mas a cada dois brasileiros, um estava na condição de pobre. Era um país que crescia sem distribuir. Tivemos, na década passada, pela primeira vez, a combinação da democracia com crescimento mais robusto e com melhor distribuição da renda. Estamos vivendo um contexto muito distinto atualmente, que é a constituição das chamadas cadeias produtivas globais, controladas por 500 grandes corporações transnacionais, que fazem com que não haja mais uma fronteira nítida entre capital externo e capital nacional, mas sim qual é a participação de cada país nessas cadeias produtivas. Há um questionamento sobre para onde vai o Brasil. Se o Brasil vai se aprofundar como exportador de produtos primários, ou será um país com capacidade de participar de uma cadeia com produtos de maior valor agregado.
Patrycia Monteiro Rizzotto – O que o Brasil precisa fazer para diminuir as desigualdades?
Márcio Pochmann – As principais mudanças estão associadas à retomada do crescimento da economia brasileira e ao progressismo no aumento nos gastos das políticas sociais. Em 1985, os gastos sociais representavam algo em torno de 13,5% do PIB. Hoje, giram em 23% do PIB. E ao mesmo tempo fizemos com que esse investimento fosse mais progressivo, chegou a quem mais precisa. Esse é o resultado que começamos a colher agora. Agora temos um desafio que é o de reconstituir uma estrutura tributária mais progressiva, porque se de um lado estamos conseguindo levar mais recursos para quem mais precisa, temos ainda uma arrecadação que onera os mais pobres em relação aos mais ricos. Veja que aqui em São Paulo há uma tentativa de dar progressividade ao IPTU e há tensão. A prefeita Marta Suplicy também viveu essa tensão. As camadas ricas da população não aceitam pagar impostos, os que menos impostos pagam são os que mais reclamam. O povo pobre, que mais imposto paga proporcionalmente, quase não reclama.
Patrycia Monteiro Rizzotto – Como equilibrar a arrecadação?
Márcio Pochmann – Temos um capitalismo selvagem que não passou por reformas civilizatórias. Países desenvolvidos, como EUA, Inglaterra e França, tiveram alguma reforma agrária. Nós não fizemos a reforma e isso fez com que a pobreza que estava no campo se transferisse para as cidades. Temos essa herança das pessoas que moram nas periferias, sem condições adequadas.
A outra reforma que não fizemos foi a tributária. O Imposto de Renda, por exemplo, nós já tivemos uma alíquota de até 50% sobre a renda na época do regime militar; hoje temos uma de 27%. Se olharmos os países desenvolvidos, as alíquotas chegam a 50%, 60% da renda. Aqui, a resistência a isso não é pequena. E não fizemos uma reforma de bem-estar social, não construímos um Estado que viabilizasse, com qualidade, e universalizasse a educação e a saúde, por exemplo. Tivemos uma trajetória longa, mas sem experiências democráticas. O país tem 50 anos de experiência democrática, em mais de 500 anos de história. A ausência de democracia impediu de certa maneira a realização dessas reformas e a construção de um país para todos.
Esse é o desafio hoje, como construir uma infraestrutura na qual caibam todos os brasileiros. Talvez um dos principais qualitativos do governo Lula foi o de inverter uma lógica dos economistas, que diziam que a economia tinha de crescer para depois distribuir. Ele disse “não, vamos distribuir crescendo”. Essa inversão de prioridades deu condições de mais pessoas terem renda, mas a infraestrutura era inadequada para atender a todo mundo.
Patrycia Monteiro Rizzotto – E o Bolsa Família?
Márcio Pochmann – Os maiores programas de transferências de renda do mundo estão justamente nos países ricos, porque há um entendimento de que parcela da população não tem condições de sobreviver a uma economia de mercado. O Bolsa Família vai na direção desses programas internacionais. Dadas as suas condicionalidades, o programa está voltado às crianças na tentativa de romper a pobreza intergeracional, que faz com o filho do pobre continue sendo pobre, porque o pai era pobre. É um programa que veio para ficar. O êxito do Bolsa Família está justamente em estabelecer um conjunto articulado de políticas, porque antes cada setor do governo cuidava de parte da pessoa. O Bolsa Família é uma tentativa de dar matricialidade à política pública.
Patrycia Monteiro Rizzotto – Os programas de inclusão levarão a classe E à extinção?
Márcio Pochmann – Eu não gosto desse conceito de classe A, B, C, D, e E. Eu entendo que é um critério que normalmente as empresas adotam, analisando o nível de renda dos consumidores. Sou uma pessoa que vem da universidade, portanto tenho compromisso com a ciência, e para mim esse critério não diz nada. Eu não observo a sociedade através do critério renda. Eu gosto muito dos critérios weberiano e marxista para observar a estrutura de classes numa sociedade. O que define a divisão de classes é a maneira como cada uma interage como seu trabalho. É quem detém a capacidade de empregar pessoas, enquanto outros não têm outra alternativa a não ser a de ser empregados ou exercer sua atividade como autônomos. Evidentemente que à medida que se vai elevando o nível de renda, determinados segmentos vão tendo uma menor presença em termos absolutos e relativos, mas isso não quer dizer que reduziu a hierarquia social. A miséria tende a desaparecer como desapareceu aquela pobreza sem renda.
Patrycia Monteiro Rizzotto – A ascensão da classe C veio junto com sua conscientização?
Márcio Pochmann – É um equívoco entender a elevação de renda como mudança de classe social. Quem olhar os EUA e a Europa do pós-guerra perceberá que houve uma elevação de renda que permitiu às pessoas avançar no consumo. Nos anos 40, de cada dez operários franceses somente um tinha automóvel; na década de 70, nove em cada dez já tinham carro. Eles continuaram sendo operários, mas passaram a ter acesso a um padrão de consumo antes restrito aos ricos. Mas isso não permitiu que eles mudassem de classe. Olha, identificar um trabalhador doméstico como classe média é um atentado à literatura. 54% de chefes de famílias dessa nova classe média são analfabetos… Weber percebe que a ideia da classe média tem valores, status. Eu posso ter um mestre de obras que ganha R$ 5 mil, mas ele não ouve música, é semianalfabeto, não conhece cinema, não tem acesso à educação. Esse cidadão representa o extrato intermediário entre muito ricos e muito pobres? Não.
Patrycia Monteiro Rizzotto – O que é classe média conceitualmente, então?
Márcio Pochmann – Classe média é um segmento que poupa; o trabalhador gasta tudo o que ganha. O miserável planeja o dia, não sabe se vai ver o amanhã. O trabalhador é aquele que vive o mês. A classe média é a que planeja o ano. E o rico planeja décadas. Eu não sou contra a classe média, essa é classe trabalhadora que está em formação. Agora, nós tivemos uma inserção social sem politização. Os 1,1 milhão de jovens que ingressaram no ensino superior, por causa do Prouni, não necessariamente estão nas entidades estudantis. Nós tivemos 20 milhões de trabalhadores que conseguiram emprego no mercado formal de trabalho, mas não foram para o sindicato, a taxa de sindicalização está estabilizada. Há milhões de brasileiros que adquiriram imóveis pelo Minha Casa Minha Vida, mas nem por isso cresceu o número de associações de moradores. Por isso, tivemos manifestações de rua sem a participação de entidades representativas.
Patrycia Monteiro Rizzotto – Que tipo de mudanças essa nova classe pode promover?
Márcio Pochmann – Ela emergiu no seguinte contexto: 78% dos empregos gerados foi no setor de serviços, 95% foi de até dois salários mínimos. No fundo, essa discussão vai desembocar na questão de que tipo de Estado eu quero ter. Se eu sou trabalhador, meu dinheiro não dá para eu viver direito, então eu quero melhorias na educação e na saúde pública. Se eu sou classe média, eu quero todos esses serviços da iniciativa privada.
Patrycia Monteiro Rizzotto – O governo já tem o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Prouni, Fies… ainda há necessidade de outros programas para promover a inclusão social?
Márcio Pochmann – Devemos pensar em programas que levem em conta a mudança demográfica. Há um processo de envelhecimento da população, o que nos coloca questões que nunca tínhamos pensado, como o isolamento das pessoas mais velhas. A quantidade de pessoas que moram sozinhas também tem crescido e as famílias estão tendo filhos com mais idade. Precisaremos criar novos apoios familiares. Talvez tenhamos de ter mais políticas públicas com cortes sociais.
Controvérsia
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