segunda-feira, 4 de março de 2013
Na rua o jovem de favela não é um cidadão
Internet: antídoto contra segregação urbana?
Pesquisa revela difusão do computador pessoal nas favelas. Geógrafo afirma: jovens apropriam-se da rede para enfrentar preconceito e multiplicar iniciativas
Uma pesquisa realizada em cinco favelas do Rio Janeiro – Rocinha, Cidade de Deus, Manguinhos e os complexos do Alemão e da Penha – apontou que 90% dos jovens dessas comunidades acessam a internet de seus computadores pessoais. Para o levantamento, foram entrevistados 2 mil jovens, e o estudo foi realizado em parceria pela Secretaria Estadual de Cultura, juntamente com a ONG Observatório de Favelas.
“Na rua, o jovem de favela é apenas ‘um jovem da favela’, não é um cidadão. Não possui sua cidadania reconhecida, seu corpo abrigado e sua vida respeitada. Agora, no seu Facebook ele se mostra, fala de si, identifica suas preferências, afirma seus gostos, enuncia seus conflitos, tudo isso porque não se sente só. Entra em contato com jovens parecidos com ele e diferentes dele”, destaca o professor e pesquisador Jorge Luiz Barbosa, autor do trabalho, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Jorge Luiz Barbosa é graduado e fez mestrado em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez doutorado na Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Geografia Humana pela Universidade de Barcelona – Espanha. É docente na Universidade Federal Fluminense e coordenador do Observatório das Favelas.
Confira a entrevista.
Que mudanças são sinalizadas pela adoção dos usuários de baixa renda à rede, sobretudo com o componente de que acessam a partir de seus computadores? As lan houses passam a ocupar um papel secundário na inclusão social?
Jorge Luiz Barbosa – O uso da internet significa a apropriação e uso de tecnologias que afirmam a visibilidade do jovem de origem popular, geralmente estigmatizado e desconhecido na cidade. Esse processo significa, por outro lado, uma possibilidade formidável de ampliação de sua experiência de tempo/espaço, uma vez que sua mobilidade urbana é reduzida e constrangida por situações econômicas, sociais e raciais. As lan houses fizeram e ainda fazem parte deste processo de afirmação do jovem em territorialidades virtuais. Porém, cada vez mais os jovens (com a ajuda de suas famílias) conseguem ter seu próprio computador e por isso ganham, além de um bem distintivo, um dispositivo de informação e comunicação mais pessoal. Assim, as lan houses tendem a perder o público que anteriormente tinham e precisarão se reconverter em pequenas empresas de prestação de serviço de internet para continuar atuando no mesmo segmento técnico-econômico nas favelas.
Como podemos compreender a invisibilidade do cidadão nas ruas e seu sentimento de pertença na internet? De que maneira a tecnologia redefine o relacionamento social entre as classes?
Jorge Luiz Barbosa – Na rua o jovem de favela é apenas “um jovem da favela”, não é um cidadão. Não possui sua cidadania reconhecida, seu corpo abrigado e sua vida respeitada. Agora, no seu Facebook ele se mostra, fala de si, identifica suas preferências, afirma seus gostos, enuncia seus conflitos — tudo isso porque não se sente só. Entra em contato com jovens parecidos com ele e diferentes dele. Há, portanto, a criação de pertenças. Pertenças que não são virtuais, pois eles se comunicam com signos e significados que lhes são comuns, a referência da rede de conversações é o vivido, é cultura compartilhada, é o território habitado por eles. A tecnologia não redefine relações, mas os sujeitos que se apropriam e fazem uso dela como dispositivo de autonomia de construção e afirmação de suas identidades. Acredito que isso poderá aproximar jovens de distintas classes sociais, bairros e favelas. Sendo uma das mediações importantes para a construção de uma cidade una e plural.
O que isso representa em termos de imaginário da cidade?
Jorge Luiz Barbosa – Significa uma revolução no imaginário urbano. Os jovens de espaços populares constroem seu repertório simbólico a partir da navegação na rede. Ao baixar músicas, filmes e fotos, elaboram um acervo próprio. Experiência que era impossível para seus pais. Isso é uma nova história pessoal e coletiva se fazendo no contemporâneo. É importante destacar que os acervos são feitos de trocas, de postagens, downloads e uploads. Isto é, há circulação cada vez mais intensa de imagens sonoras e visuais. E, como a nossa pesquisa demonstrou, essas trocas não acontecem apenas no mundo virtual. Os jovens das favelas fazem uma passagem rápida do virtual para o corpóreo, pois suas trocas se concretizam no presencial: na rua, na praça, nos bailes, no churrasco na laje. Ou seja, é nos espaços comuns que celebram o encontro, vivem a presença do outro, constroem identidades. É nesse momento que cantam, dançam, contam e, portanto, vivenciam seus acervos. Essa “comunidade de sentido” é a nova geografia do imaginário da cidade.
Que perspectivas se delineiam para o diálogo das diferenças na sociedade com esse empoderamento digital de pessoas que moram nas favelas?
Jorge Luiz Barbosa – Os jovens de espaços populares criam estilos, por exemplo, o passinho do menor. Os garotos criam palcos em becos e escadarias, inventam seus passos na musicalidade do funk e do charme, gravam vídeos e postam no YouTube. Nos dias seguintes, outros jovens de favelas estão assistindo e criando seus passos. Esta circularidade alcança os jovens dos condomínios e coberturas dos bairros de classe média alta. Logo mais, estes mesmos jovens distantes estarão dando seus passinhos nos seus salões de festas. Estamos diante da possibilidade do diálogo de diferenças e de diferentes (e de desiguais). O destaque deste fenômeno estético-cultural é o território que é a centralidade de sua criação, é o corpo de sua expressão, é a marcação simbólica de sua origem. Podemos chamar isso de empoderamento? Penso que sim. Mas não de um empoderamento digital, pois este é apenas um dispositivo, mas sim de imaginário corporificado nas práticas dos jovens das favelas.
Em que sentido tecnologias como as fotos tiradas por celulares ajudam a construir uma memória antes não disponível?
Jorge Luiz Barbosa – É este o acervo de representações que são feitas pelos próprios jovens. São evocações de si, do outro e do mundo que vêm sendo construídas de forma mais ou menos autônoma. Poder representar a si mesmo, superando representações estereotipadas de distantes, é um exercício de democracia, além de construir a própria memória social e não simplesmente recebê-la pronta.
Os computadores com acesso à internet ocupam o espaço que era da televisão? Como compreender que algumas casas não tenham geladeira, mas tenham computador?
Jorge Luiz Barbosa – Nossa sociedade vive de bens distintivos. É partir deles, e com eles, que somos considerados e respeitados. Infelizmente é essa a marca hegemônica de nossa sociedade. Por outro lado, o consumo se tornou um campo de disputa de imaginário. Só os mais pobres das favelas não possuem televisão. E só os mais pobres entre os mais pobres não possuem geladeira. O computador tem o seu próprio significado e espaço nas famílias das favelas, inclusive de manter seus filhos dentro de casa e longe das situações de conflitos armados entre facções criminosas e entre estas e a polícia.
O que a exposição de imagens revela sobre a individualidade do sujeito? Há, de alguma forma, uma espécie de busca por uma identidade/comportamento mais parecido com o a classe média?
Jorge Luiz Barbosa – Acredito que há um movimento de individuação dos jovens de espaços populares. Mostrar quem é, o que sonha e o que quer. É a construção do sujeito olhando para o futuro. A identidade precisa ter essa relação com futuro, com o devir. Se não se ossifica, se banaliza. As entrevistas demonstram que os jovens estão traduzindo suas identidades com sua vivência em seus territórios de morada. Suas perspectivas possuem essa relação com o território; com seus conflitos e contradições. Daí, não acredito que se assemelhem às expectativas limitadas da classe média. Os jovens de favelas precisam querer muito mais do que ser um consumidor.
Que papel as mulheres ocupam neste espaço virtual? Há diferenças no comportamento, nos usos ou, até mesmo, no acesso?
Jorge Luiz Barbosa – Essas questões serão desdobradas nas análises das informações obtidas com as jovens entrevistadas. Nossa pesquisa também se fez com recortes sociais e territoriais específicos. Há questões de gênero e de gênero/raça que serão desveladas em breve.
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