Mudanças, transformações e deslocamentos sociais
No seu livro clássico publicado em meados dos anos 60, “A revolução brasileira”, o professor, intelectual e deputado comunista na constituinte em 47, Caio Prado Jr, afirma em síntese que “os empecilhos para que nossa nação rompa o círculo vicioso do atraso estão absolutamente vinculados à miséria existente no nosso país”. Usando uma categoria gramsciana poderíamos dizer que o tema da miséria no país é similar ao que Antonio Gramsci denominou na Itália de “A questão Meridional”, ou seja, que a grande debilidade do capitalismo italiano estava em não ter resolvido os problemas do atraso da sua região sul.
Esta introdução é feita para permitir maiores elementos de compreensão ao singular momento histórico que estamos vivendo. E para reafirmar que o enfrentamento à miséria não é obra do acaso e nem produto da genialidade de somente uma liderança.
Mas é, sim, resultado de uma injunção política, que combina formulação teórica com ação prática, com um governo disposto a enfrentar “a nossa questão meridional” – qual seja, a miséria – e uma liderança que veio de baixo forjada na luta, com responsabilidade para enfrentá-la, sobretudo com enorme legitimidade para tal.
Mesmo em meio à enorme crise do modelo neoliberal em âmbito global, cria as condições para vivermos um período no Brasil de enormes deslocamentos na condição social de nosso povo, através de significativas mudanças e transformações do ponto de vista econômico, social e cultural, que o próprio pensamento sociológico e político ainda não teve tempo hábil de refletir e analisar. Pois aquilo que poderia se chamar de “Era Lula” ou de “Lulismo” é muito recente e, portanto, seu sentido histórico ainda está longe de se fixar.
Aliás todo o fenômeno social e político, que do ponto de vista histórico, se pretenda ser analisado de forma rigorosa, exige um paciencioso estudo e não recomenda conclusões precipitadas. Mas também não recomenda caracterizações simplificadas e pseudoesquerdistas, descoladas de nossa realidade social.
É assim que após duas décadas de ditadura e uma de neoliberalismo, depois dos governos de Getúlio Vargas e do movimento épico da Legalidade com Jango e Brizola, descortinamos as primeiras décadas do século XXI com três mandatos consecutivos dirigidos por forças democráticas e populares. Que abrem um período de enormes e positivas alterações nas camadas sociais de nosso país, produzidos por importantes mudanças e transformações decorrentes de fortes programas sociais e políticas de desenvolvimento.
Que mesmo com toda a precaução que tal caracterização exige, já se pode antever que elas não são mais uma pequena janela num largo período conservador brasileiro, mas, sim, uma possível ponte relevante para uma ruptura com um modelo herdado. Capaz de propor e efetivar a construção de um projeto nacional com justiça social, democrático e soberano. Que nos possibilite retomar, nesta segunda década do terceiro milênio, mesmo em meio a crise mundial, a noção de que ainda é possível construir um Estado-Nação, em plena era da mundialização das relações em sociedade.
Estes deslocamentos sociais tornam-se mais evidentes, quando de forma desapaixonada examinamos os números, os resultados e os benefícios trazidos ao povo brasileiro por este período que podemos caracterizar de o “lulismo” no governo.
Lula e Dilma promoveram mudanças de tal monta, que 40 milhões de brasileiros que viviam à margem da sociedade se beneficiaram de um amplo processo de inclusão. Foram programas sociais e políticas de desenvolvimento que fizeram com que boa parte da população que vivia abaixo da linha da miséria, melhorasse sua condição de vida, a ponto de alguns estudiosos já começarem a dizer que estamos virando um país de classe média, devido ao grau acelerado de deslocamentos e mobilidade social ocorrido neste período. E que Marilena Chauí chama de “ampliação da classe trabalhadora”.
Enquanto no início da década passada tínhamos em torno de 60 milhões de pessoas na chamada classe C, no início desta temos mais de 100 milhões. Nas chamadas classes D e E, tínhamos 90 milhões e agora baixaram para 45 milhões. E as classes A e B tinham 25 milhões e foram para mais de 40 milhões, dados da pesquisa Observador Brasil, realizados pela Celetem BGN-IPSOS.
Há um outro dado utilizado por André Singer e a ministra Miriam Belchior, que é o índice GINI, que mede distribuição de renda no país, que vai de zero(+ igual) a um(- igual). No final da década de 90 do século passado, era de 0,553; passou para 0,520 em meados da primeira década do terceiro milênio e chega hoje a um valor próximo de 0,500.
Em pouco menos de uma década nosso país mudou de face. Quando Lula chegou a o governo o risco Brasil era de 2.400 pontos, a inflação tinha uma projeção anual de 24%, a taxa Selic atingia juros espantosos de 25% e o dólar valia R$ 4,00. O desemprego era superior a 12% e o salário mínimo não chegava a US$ 70. Além disto, tínhamos uma dívida externa de US$ 220 bilhões e nossas reservas eram de apenas US$ 36 bilhões, associado a tudo isto, não podemos esquecer que vivíamos sobre o tacão do apagão, do racionamento de energia elétrica e das privatizações.
Hoje o quadro é bem distinto e as mudanças foram significativamente para melhor. O risco país caiu para 155 pontos, a inflação está controlada, a taxa Selic caiu para 7,25%, o juro real diminuiu para 1,5% e o câmbio estabilizou em R$ 2,00. Mas não parou aí, foram criados durante todo este período 19 milhões de empregos com carteira assinada, o salário mínimo superou os US$ 300 e nossas reservas chegam a casa de US$ 370 bilhões.
Estudiosos e economistas classificam nossa situação neste momento como de pleno emprego. Sem contar que a massa salarial no PIB brasileiro subiu neste período de 46% para mais de 52% e o PIB per capita real anual passou de R$ 16.482,00 para R$ 21.252,00.
Tudo isto é fruto de uma opção pelo desenvolvimento com inclusão e distribuição de renda, deixando para trás uma política elitista, concentradora, que privilegiava o rentismo e a especulação financeira, além de subordinada e submissa do ponto de vista internacional.
Só se pode entender tudo isto, a partir da compreensão de que o “lulismo” ao enfrentar a miséria como uma questão central, dinamizou nossa economia e começou a mudar as relações de classes sociais no país, alterando o estranho e prolongado arranjo político em que os excluídos eram o eixo de sustentação da exclusão.
Ao encontrar um país com um grau tão elevado de miséria, profundas desigualdades sociais e enormes diferenças econômicas, mas com um mercado interno de massas com imenso potencial, as mudanças que foram feitas, embora brandas, produziram significativos efeitos, sobretudo para os de baixo, que foram fortemente beneficiados por elas.
Pois tanto na simbologia da política quanto na prática, estes efeitos foram tão fortes que, de um lado, as urnas mostraram na eleição de Dilma quando sucedeu Lula, o quanto foram eficazes estes resultados, e de outro, que a oposição ficou sem discurso e sem projeto político para o país, restando a ela defender uma agenda conservadora e superada, interditada e porque não derrotada, pelas iniciativas do “lulismo”.
Em resumo a “era Lula” a partir das mudanças e transformações produzidas no Brasil, onde há muitas gerações as classes mais precarizadas sempre estiveram esquecidas e muitas vezes foram manipuladas e utilizadas funcionalmente, têm hoje uma saída para se deslocarem desta dominação e romperem com uma indigna e longa subordinação a que foram submetidas.
E é daí que conclui-se que o programa do “lulismo” de erradicação da miséria, incide fortemente na condição de fazer com que os setores mais excluídos da sociedade, passem a se afastar da indiferença política e e incidir no conflito nuclear brasileiro, como já dizia Caio Prado Jr, qual seja, aquele que opõe “incluídos” e “excluídos”.
Num país continental como o nosso, com um enorme mercado de massas foi necessário reconhecer a existência de uma grande fração de classe, que necessitava sair da exclusão e ascender ao mundo do trabalho e ter um governo com respostas para isto.
De onde se depreende que todas estas alteração e deslocamentos podem estar representando, e as urnas assim têm confirmado, a configuração de um novo bloco social no país.
Capaz de nos dias de hoje realizar algo semelhante ao que produziu o varguismo dentro dos seus limites, quando soldou os migrantes rurais aos trabalhadores urbanos, recuperou as funções públicas de estado e produziu um processo de industrialização e inclusão de novo tipo.
É mister registrar, que sempre a esquerda brasileira teve como evidente, que para enfrentar o tema da miséria, seria necessário alterar a ordem vigente, uma estratégia radical.
Ela não deixa de continuar válida, entretanto o que o “lulismo” passa a demonstrar é que existem outras possibilidades e caminhos, é aquilo que André Singer chama de “reformismo lento” ou gradual, mas que não deixa objetivamente na prática de ser reformismo. Sobretudo porque empolga aqueles que até então estavam fora do concerto social vigente e começam a sentir e verificar concretamente a diminuição das desigualdades e a melhora da sua condição de vida.
Por fim é evidente que mesmo com todos estes avanços, o déficit social e político do nosso país para com o nosso povo é ainda imenso. E o que já fizemos é pouco diante das tarefas e responsabilidades que teremos ainda pela frente.
Serão ainda necessários decisões políticas firmes e justas, com eficiência e a necessária capacidade operacional e de gestão, para acumularmos mais força ainda. Onde não deve faltar coragem, planejamento e iniciativas que nos proporcionem uma relação mais forte com a dinâmica das lutas sociais do país. De modo também que possamos incidir com mais contundência, naquilo que na disputa política chamamos de correlação de forças, para que possamos fazer as reformas estruturantes que o Brasil e nosso povo tanto necessita.
Sul21
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