História de Domingo
Mauro Santayana
Nunca voltamos. Os lugares mudam
todos os dias, como também mudamos. As lágrimas cavam rugas em nosso rosto e as
chuvas abrem feridas na paisagem de nossa infância; assim como nós, as casas e
as ruas, as árvores e os jardins, estão sempre mudando, porque o tempo as
conduz nesse êxodo rumo ao nada, mais próximo de nós, menos próximo das pedras
e riachos, das montanhas e rios, que duram muito mais do que a efêmera carne
que nos veste a alma.
Mas se não voltamos ao mesmo lugar, posto que o lugar é sempre outro, voltamos
na geografia, em busca do tempo perdido, se posso plagiar Proust. Foi assim que
retornei em vão ao velho Pouso do Marimbondo, em que descansavam, no século 18,
os tropeiros e seus burros. Como o comércio crescesse e se amiudassem as
viagens, uma mulher da vida decidiu levantar ali seu rancho, e servir cachaça e
consolo aos passantes. No princípio era só isso. Os próprios tropeiros
armavam trempes e redes, cozinhavam feijão com charque, roncavam
feito bichos, enquanto os burros zurravam. Era de sua promessa a Nossa Senhora
que, tirante os deveres de seu ofício, dormiria só, e, só, dormia.
Com o tempo, surgiram outras raparigas, mais jovens, que ergueram também os
seus barracos. De vez em quando uma se emprenhava e paria, como ela mesma, mãe
de quatro ou cinco, e era difícil identificar os pais, sempre esquivos,
posto que todos de mulher fixa longe dali, e dinheiro miúdo. E o Pouso do
Marimbondo se transformou em patrimônio, com capela devotada a Santa Maria
Madalena, como era de seu direito, e depois em distrito, na balbúrdia daquela
promiscuidade.
Ali, em cidade crescida, passei a infância, descendente longínquo daquela
pioneira, sem saber de que linhagem procedia; se dos morenos abugrados, se dos
portugueses temperados de mestiçagem. Quando fiquei rapazola, meu pai, ficando
viúvo, demandou outros destinos, e de lá saí, montando jumentinha castanha,
isso faz muito mais de meio século. Voltei, pensando em comprar
fazenda, faz alguns meses. Na prefeitura me deram um folheto sobre
o município:“Pouso do Marimbondo foi criado por bandeirantes que combateram os
bugres, e aqui construíram um forte. Chamou-se Pouso do Marimbondo porque o
chefe da bandeira, Manuel Lopes Salgado, nobre português de Trás-os-Montes, que
estava acompanhado de sua mulher, foi picado por um marimbondo-cavalo, quando
levantou a sua primeira casa de pedra, cujas ruínas podem ser vistas à margem
do riacho, na praça central”. Vi o que ficara do tugúrio de Chiquinha
Dengosa, a esquecida e solidária matriarca da cidade hipócrita e ingrata.
E parti de novo, para nunca mais voltar.
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