quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Uma favela com a marca fatal do Mundial da Fifa



Fabiana Frayssinet 

Os moradores do Morro da Providência, a favela mais antiga do Brasil, estão divididos diante das obras para o Mundial de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. Uns se alegram pelas melhorias que implicarão, mas outros alertam que serão derrubadas centenas de casas. As letras SMH, pintadas nas paredes de algumas casas desta comunidade superlotada do Rio de Janeiro, no começo foram um total enigma para os habitantes. 


Agora já sabem muito bem o destino que aguarda todas as casas marcadas “como gado”. “SMH significa Secretaria Municipal de Habitação, o órgão que vai nos desalojar”, resumiu à IPS a moradora Jailce Felix dos Santos. “É deprimente. Muitos ficaram doentes. Chegar em sua casa e ver isso e saber que é uma marca de remoção”, contou Jailce, dona de uma das casas marcadas neste lugar considerado patrimônio histórico da cidade.

Há 832 casas marcadas e 140 já demolidas, assegura o Fórum Comunitário do Porto, que reúne na área portuária os afetados pelas obras vinculadas à realização da Copa do Mundo da Fifa em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016. O governo municipal afirma que é um passo necessário para construir um teleférico que atravessará toda a favela e terá conexão com a estação Central do Brasil.

Contudo, como a favela tem uma das vistas mais bonitas do Rio de Janeiro, também será uma nova rota turística. Além disso, está em construção um plano inclinado – uma espécie de elevador para transportar moradores até o ponto mais alto do morro – e há obras como um centro para esportes, saneamento e melhoria de ruas, quase todas apenas caminhos de difícil trânsito.

Com passo cansado depois de 45 anos trabalhando como estivador no porto, hoje também em processo de “revitalização”, Jorge Carvalho para em um patamar da escadaria empinada de quase 200 degraus que atualmente é o caminho obrigatório para subir na favela. “Já me cansei de contar quantos degraus são. Agora com o teleférico e o plano inclinado será como subir em um jato”, contou entusiasmado.

Outro morador, que prefere não ser identificado, disse não ter motivos para festejar, pois a casa onde vive há mais de 40 anos, hoje abrigando sete pessoas, está marcada com a fatídica sigla. Ele a construiu tijolo por tijolo, e o dinheiro que a prefeitura oferece agora como indenização é pouco, enquanto as moradias alternativas estão muito distantes de seus locais de trabalho.

Entretanto, o principal para este morador, que com orgulho nos leva a percorrer pontos históricos da favela, é a transformação que sofrerá um lugar considerado parte de memória urbana. O Morro da Providência, cujos primeiros barracos começaram a ser erguidos no final do século 19, é a primeira favela do Brasil. Localizada entre a Central do Brasil e a zona portuária, sua origem remete a uma das injustiças habitacionais da história da antiga capital do Brasil.

O governo federal não cumpriu sua promessa de dar moradia aos soldados que voltavam da Guerra de Canudos (1896-1897). A palavra favela, que agora se estende a todos os bairros pobres e superlotados do Brasil, teria surgido ali com os soldados que a identificavam com o nome de um morro onde ocorreram batalhas no interior do Estado da Bahia, que levava o nome de uma planta do lugar.

Alguns edifícios como capelas e igrejas remetem a essa época. Construídas com barro, é fácil identificar as ruínas das que foram as primeiras casas do Morro da Providência, que também foi berço de uma das primeiras escolas de samba. Jailce se desfez de um bar onde agora se houve a nova música dos jovens das favelas, o funk, e abriu outro nas proximidades de uma estação do teleférico, que batizou como Favela Point, antecipando-se à chegada de turistas estrangeiros.

Nos séculos 20 e 21, palco de novos “soldados” e “batalhas”, como as travadas pelos grupos do narcotráfico e a polícia, o Morro da Providência agora é parte do processo de pacificação das favelas com a instalação das Unidades de Polícia Permanente (UPP). “A comunidade da Providência foi esquecida durante muito tempo e, depois que a UPP entrou, foi mais reconhecida e mudou muito”, conta uma entusiasmada Jailce. “Os tiroteios diminuíram muito ultimamente e agora há oportunidades de trabalho para a comunidade com as obras”, acrescentou.

No entanto, como mulher nascida e criada na favela, não deixa de reconhecer o lado “triste” da chegada do “progresso” e a transformação que sua comunidade sofrerá, não só fisicamente. “Estão tirando a amizade, que agora está mais longe”, lamentou. Carolina Pacheco, empregada da Casa Amarela, um espaço cultural da comunidade, também teme a transfiguração social da favela. Antecipa que com o teleférico começará a subir “todo tipo de pessoa e teremos que ter mais cuidado com as crianças porque pode entrar qualquer um e a maldade está na cabeça de qualquer pessoa”.

Esse futuro, que assusta Carolina, contrasta com a vida comunitária onde até agora “havia segurança porque por aqui não passava transporte, todo mundo conhecia todo mundo, todos cuidavam das crianças e quando chegava algum desconhecido sabíamos que era alguém de fora”, afirmou. No entanto, ela também comemora a “transformação”, afirmando que “tem seu lado bom e ruim. O lado positivo é que com estas obras o desenvolvimento está chegando”.

Apesar da alegria de alguns, ninguém esconde a angústia pela saída dos que têm ou tiveram suas casas marcadas. “Terão que ir de uma hora para outra depois de viverem aqui toda sua vida”, contou Carolina. Em alguns casos a prefeitura argumenta que a medida é por motivos de segurança, porque estão em área de risco de deslizamento de terra.

Porém, para Caroline Rodrigues da Silva, do Fórum Comunitário do Porto, é apenas mais um capítulo da especulação imobiliária que provocou um aumento de preços sem fim nas vendas e aluguéis de propriedades. “Há coisas fortes por trás. Uma é a violência do Estado, legitimando que estas obras sejam implementadas. Exemplo disso são as UPPs, implantadas apenas nas favelas que estão ao redor dos locais onde acontecerão os grandes eventos esportivos. Esta é uma cidade à venda. É um controle da população para que aceite o que vier”, disse Caroline à IPS.

“Por outro lado, é o uso do espaço público que por muitos anos foi esquecido. Agora, como os terrenos se valorizaram e houve reestruturação de toda a área, especula-se cada vez mais”, explicou Caroline. Sabem disso especialmente os moradores do Morro da Providência que por décadas viveram os efeitos do abandono do Estado e agora temem que, após encerrados os megaeventos esportivos, sejam esquecidos novamente. Envolverde/IPS

(IPS)
Envolverde

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