sábado, 8 de dezembro de 2012

Pior é calar a boca


Por Maria Ângela Bulhões

A Psicanálise baseia-se na fala por associação livre e propõe que você possa falar sem constrangimentos sobre aquilo que lhe concerne, falar suas verdades.

Parece banal dizer o quanto é importante falarmos sobre nossas próprias experiências e elaborarmos essas vivências psiquicamente. 




Falamos o tempo todo (as mulheres mais!), contando aquilo que nos aconteceu e que nos deixou surpresos, entristecidos, furiosos ou mesmo apaixonados etc…

Falar nos dá existência e é condição para conseguirmos ir além da simples experimentação que os sentidos nos possibilitam. Organizando nossos pensamentos ou apenas relatando nossos devaneios, ao falarmos incluímos o outro que nos testemunha.

Foi como testemunha da experiência de uma paciente que fui incluída nessa história. Escutei uma mulher adulta, que tenta lidar com os reflexos da violência sexual, vivida na sua infância. 


Infelizmente essa não é uma história incomum num ambulatório público de saúde mental. Um ato sexual entre um adulto e uma criança não deveria acontecer. O corpo infantil não pode ser objeto de prazer de um adulto, pois ambos não estão na mesma condição de fazer essa escolha. A violência que acontece nessa cena está na atitude do adulto de antecipar um ato que a criança ainda não tem condições de decifrar completamente e, portanto, ainda ¨não sabe¨ .

Certamente, aqueles que deveriam protegê-la de viver precocemente a realidade sexual não o fizeram. A lei não foi capaz de proteger o corpo infantil e a paciente teve que se ver com os tortuosos caminhos do desejo de um adulto que não controlou seus impulsos.

Ao abuso somou-se outro ato de violência. Na tentativa de ser protegida por um adulto, a menina contou para sua mãe sobre o que estava acontecendo. A mãe, num ato gestual, tapou sua boca com a mão, aludindo ao silêncio que deveria existir sobre o fato de ela estar sendo abusada. Esse ato foi tão violento quanto o fato de ser violentada, pois desautorizou que ela denunciasse o abuso. Sentiu-se, assim, violentada duas vezes.

Talvez a violência do abuso pudesse ter sido vivida de outra forma, se a mãe tivesse lhe dado ouvidos e tivesse imposto os limites da lei ao agressor. Qual a força da lei, quando ela falha no âmbito mais privado da vida coletiva, no próprio lar? A violência é perpetuada e a impunidade autorizada.

Esta situação trágica remeteu-me a um fato político recente de nosso país: a criação da Comissão da Verdade. Organizada para investigar os arquivos secretos do Governo no período da ditadura militar, a comissão não terá como penalizar os autores dos atos de violência que aconteceram em nosso país, nos anos de ditadura, incluindo aí prisões, torturas, mortes e sequestros, mas terá a tarefa de falar sobre o que há muito tempo calamos. Falar sobre esses fatos é importante para estabelecer como realidade reconhecida coletivamente aquilo que foi vivido no âmbito individual tantas vezes como ¨pesadelos¨, que poderiam ficar na dimensão de um ¨sonho¨ ou de uma ¨loucura¨. Falar sobre esses fatos é importante principalmente para não corrermos o risco de perpetuar a violência e autorizarmos a impunidade na vida política de nosso país.

Um cala a boca pode produzir efeitos enlouquecedores e de perpetuação da violência. A denúncia do excesso pode redimensioná-lo. Falar sobre a violência que se viveu, mesmo sabendo que os fatos serão sempre versões e interpretações do acontecido, nunca é demais!


Maria Ângela Bulhões, psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA; psícóloga do ambulatório do Hospital Psiquiátrico São Pedro.

Sul 21

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