quinta-feira, 7 de junho de 2018

Judiciário, crise e fascismo

Leva-se o clamor da opinião pública a condenar

Fábio Wanderley Reis

Fui gentilmente convidado por esta Folha para um debate sobre a eleição presidencial e a conjuntura. Publicada em 24 de maio, breve notícia inicial sobre o assunto limita-se, quanto à minha participação, a combinar a informação sobre a associação que faço entre a Operação Lava Jato e riscos para a democracia com a qualificação de "fascistoide" dirigida ao juiz Sergio Moro —como diz o texto, por causa de "um artigo acadêmico de 2004 em que Moro defendeu a busca de apoio da opinião pública como parte essencial de uma estratégia de combate à corrupção".



O debate tomou rumo polêmico, e com certeza usei a qualificação. Mas a menção feita a Moro remetia a uma reveladora passagem do tal artigo (para quem quiser conferir, "Operação Mani Pulite", Revista CEJ, 2004, p. 61). Nela, recorrer à democracia —note-se!— para o combate à corrupção é assimilado à possibilidade de contornar "a carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal" e ao "salutar substitutivo" que a opinião pública pode constituir, "tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo".



Ou seja: como provar crime é difícil, levemos, em nome da democracia, a opinião pública a condenar. É patente o caráter pouco democrático desse suposto recurso à democracia, em que o clamor da opinião pública manipulada atropela direitos garantidos em lei. Esse caráter marca várias ações ilegais de Moro, objeto de crítica e rechaço do próprio Supremo Tribunal Federal —embora, como os efeitos da crise certamente alcançam os escalões mais altos do Poder Judiciário, daí não tenham resultado sanções.



Mas, num aspecto central do que procurei dizer no debate, tratando justamente da opinião pública, procurava contrapor-me à leitura de outro participante, Carlos Pereira. Vendo a opinião pública como entidade singular e expressão unânime do que pensa o país em dado momento, o que propunha Pereira redundava em santificá-la e torná-la o suporte sadio da redefinição punitivista que se vem manifestando no Ministério Público e no Judiciário —incluído, sem dúvida, o STF, onde ministros como Luís Roberto Barroso e a própria presidente Cármen Lúcia reclamam atenção, com insistência, para coisas como o "sentimento da cidadania".



O que aí se omite é que há opiniões públicas e "sentimentos" diversos na cidadania, de modo especial em correspondência com divergências políticas. Ainda que nossa desigualdade leve a que os cidadãos de classe média ou acima tendam a ser também os formuladores e operadores da opinião pública mais vocal — e, assim, a tornar ocasionalmente dominante uma opinião classista—, é preciso lembrar que, menos mal, todos os cidadãos dispõem do voto e que um Judiciário orientado pela opinião pública dominante estará benzendo judicialmente algo nítido em nossa crise atual: a opinião pública a se colocar contra o eleitorado. Fará, pois, política, e com frequência política de elite.



Quanto a fascismo, cabe ainda uma evocação dramática: a da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de 22 de setembro de 2016, que mereceria maior repercussão do que teve. Ela se refere justamente às ações ilegais de Moro, que serviam de base para o pedido de seu afastamento por 19 advogados. Por voto de 13 contra apenas 1 dos 14 desembargadores participantes (o do desembargador Rogério Favreto), o tribunal acompanhou o que propôs o relator do processo, desembargador Rômulo Pizzolatti. Reclamou-se a suspensão da relevância do "regramento genérico" vigente —incluída, naturalmente, a da própria Constituição — e invocou-se, como apontou Favreto, a teoria fascista do estado de exceção. Ficou mais fácil, depois, condenar Lula.



Fábio Wanderley Reis

Cientista político, doutor pela Universidade Harvard

(EUA) e professor emérito da UFMG

Folha sp

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