Antigo e Novo Testamento adotam valores bem diferentes para a família
Na semana passada, em São Paulo, na Marcha para Jesus, um político subiu no palanque e gritou: "Queeeeeem ama sua família? Queeeeem ama Jesus?" —para que, a cada vez, tivesse uma adesão indiferenciada: "Nóoooos!".
Esse tipo de pergunta, quando é colocada a uma multidão de pessoas que, em tese, pensam igual, é um protótipo da retórica fascista.
Jeanne Hersch (filósofa de quem fui aluno) contava que, nos anos 1930, em Heidelberg (Alemanha), ela quisera ver de perto um comício nazista. No meio da massa, ela escutou perguntas do mesmo feitio das que citei: "Quem daria a vida pela grandeza do Reich?". Sentiu-se paralisada: não conseguia se mexer, ainda menos gritar: "Eu não!".
Por sorte, eu não estava na Marcha para Jesus: a impossibilidade de argumentar teria me exasperado além da conta.
O que a família tem a ver com Jesus? Para o Antigo Testamento, a família é um valor crucial ("Honrar pai e mãe" é o quarto mandamento). Mas, para Jesus, a família é um valor BEM secundário, que não compete com o que ditam a consciência e a própria fidelidade ao ensinamento de Cristo.
Minha história preferida é a do homem que quer acompanhar a Jesus, mas pede "Senhor, permite-me que vá primeiro sepultar meu pai". Jesus responde: "Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos" (Lucas 9, 57-60; Mateus 8, 19-22).
Mateus (12, 46-50) conta também que, quando alguém anuncia a Jesus que a mãe e os irmãos querem falar com ele, Jesus, apontando para seus discípulos, responde: "Aqui estão minha mãe e meus irmãos".
Até o século 4º, os padres da Igreja também achavam que a família era uma espécie de mal menor, ao uso dos fracos.
Como entender, então, a diferença entre Antigo e Novo Testamento?
A família é um sistema muito eficiente de reprodução das ideias: os filhos tendem a adotar, ao menos em parte, as mesmas crenças de seus pais e avós (salvo exceções —que, justamente, são exceções). Portanto, em regra, um sistema de crenças bem estabelecido sempre defende a família: é graças à família que ele tenta se perpetuar.
Ao contrário, um sistema de crenças novo, revolucionário, é quase sempre oposto à família, encorajando fortemente a independência de cada rebento: para que ele possa pensar por conta própria, é bom que se separe da família.
Ora, o Antigo Testamento foi redigido para consolidar a religião do povo judaico no fim do longo exílio e cativeiro dos judeus na Babilônia: fortalecer a família era crucial para que as crenças se mantivessem.
O Novo Testamento, ao contrário, precisava estabelecer o cristianismo e torná-lo dominante no Império Romano, ou seja, combater a continuidade das crenças transmitidas pelas famílias pagãs.
Engraçadamente, quando o cristianismo se tornou dominante do Império, ele começou a promover a família como um valor. É que não se tratava mais de fomentar a rebeldia dos novos convertidos, mas de garantir a perpetuação de uma crença estabelecida.
O cristianismo das origens era libertário, generoso e cioso da absoluta liberdade do foro íntimo. Por isso, era uma religião perigosa para qualquer poder estabelecido —e mesmo para qualquer Igreja: a família promete a perpetuação das crenças e também a da filiação à mesma igreja, enquanto o cristianismo dispensa a perpetuação das duas.
Por isso, o cristianismo surge como religião da modernidade. O cristão não se assusta ao assumir que ele pensa diferente dos pais nem que ele pensa diferente da própria Igreja.
Nesse sentido, aliás, o cristianismo das origens reviveu na revolta protestante contra a Igreja Romana e foi de novo cerceado quando a Reforma produziu suas próprias Igrejas --mais preocupadas em se expandir e se perpetuar do que na ideia cristã.
Em suma, para o cristianismo originário, as afinidades afetivas e eletivas (ou seja, os amigos) são muito mais importantes do que a família.
A propósito: a grande obra cristã do momento é a série "Sense8" (Netflix, a conclusão estreia nesta sexta, 8), que é uma extraordinária celebração dos vínculos de amizade que não se confundem com os laços familiares e que se afirmam entre sujeitos que não poderiam ser mais diferentes.
Desse ponto de vista, para provocar (mesmo assim, menos do que aquelas perguntas sinistras no palanque): talvez a verdadeira Marcha para Jesus em São Paulo tenha ocorrido no domingo. Foi a Parada Gay.
Contardo Calligaris
Italiano, é psicanalista. Deu aula de estudos culturais em NY. Reflete sobre cultura e modernidade.
Na semana passada, em São Paulo, na Marcha para Jesus, um político subiu no palanque e gritou: "Queeeeeem ama sua família? Queeeeem ama Jesus?" —para que, a cada vez, tivesse uma adesão indiferenciada: "Nóoooos!".
Esse tipo de pergunta, quando é colocada a uma multidão de pessoas que, em tese, pensam igual, é um protótipo da retórica fascista.
Jeanne Hersch (filósofa de quem fui aluno) contava que, nos anos 1930, em Heidelberg (Alemanha), ela quisera ver de perto um comício nazista. No meio da massa, ela escutou perguntas do mesmo feitio das que citei: "Quem daria a vida pela grandeza do Reich?". Sentiu-se paralisada: não conseguia se mexer, ainda menos gritar: "Eu não!".
Por sorte, eu não estava na Marcha para Jesus: a impossibilidade de argumentar teria me exasperado além da conta.
O que a família tem a ver com Jesus? Para o Antigo Testamento, a família é um valor crucial ("Honrar pai e mãe" é o quarto mandamento). Mas, para Jesus, a família é um valor BEM secundário, que não compete com o que ditam a consciência e a própria fidelidade ao ensinamento de Cristo.
Minha história preferida é a do homem que quer acompanhar a Jesus, mas pede "Senhor, permite-me que vá primeiro sepultar meu pai". Jesus responde: "Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos" (Lucas 9, 57-60; Mateus 8, 19-22).
Mateus (12, 46-50) conta também que, quando alguém anuncia a Jesus que a mãe e os irmãos querem falar com ele, Jesus, apontando para seus discípulos, responde: "Aqui estão minha mãe e meus irmãos".
Até o século 4º, os padres da Igreja também achavam que a família era uma espécie de mal menor, ao uso dos fracos.
Como entender, então, a diferença entre Antigo e Novo Testamento?
A família é um sistema muito eficiente de reprodução das ideias: os filhos tendem a adotar, ao menos em parte, as mesmas crenças de seus pais e avós (salvo exceções —que, justamente, são exceções). Portanto, em regra, um sistema de crenças bem estabelecido sempre defende a família: é graças à família que ele tenta se perpetuar.
Ao contrário, um sistema de crenças novo, revolucionário, é quase sempre oposto à família, encorajando fortemente a independência de cada rebento: para que ele possa pensar por conta própria, é bom que se separe da família.
Ora, o Antigo Testamento foi redigido para consolidar a religião do povo judaico no fim do longo exílio e cativeiro dos judeus na Babilônia: fortalecer a família era crucial para que as crenças se mantivessem.
O Novo Testamento, ao contrário, precisava estabelecer o cristianismo e torná-lo dominante no Império Romano, ou seja, combater a continuidade das crenças transmitidas pelas famílias pagãs.
Engraçadamente, quando o cristianismo se tornou dominante do Império, ele começou a promover a família como um valor. É que não se tratava mais de fomentar a rebeldia dos novos convertidos, mas de garantir a perpetuação de uma crença estabelecida.
O cristianismo das origens era libertário, generoso e cioso da absoluta liberdade do foro íntimo. Por isso, era uma religião perigosa para qualquer poder estabelecido —e mesmo para qualquer Igreja: a família promete a perpetuação das crenças e também a da filiação à mesma igreja, enquanto o cristianismo dispensa a perpetuação das duas.
Por isso, o cristianismo surge como religião da modernidade. O cristão não se assusta ao assumir que ele pensa diferente dos pais nem que ele pensa diferente da própria Igreja.
Nesse sentido, aliás, o cristianismo das origens reviveu na revolta protestante contra a Igreja Romana e foi de novo cerceado quando a Reforma produziu suas próprias Igrejas --mais preocupadas em se expandir e se perpetuar do que na ideia cristã.
Em suma, para o cristianismo originário, as afinidades afetivas e eletivas (ou seja, os amigos) são muito mais importantes do que a família.
A propósito: a grande obra cristã do momento é a série "Sense8" (Netflix, a conclusão estreia nesta sexta, 8), que é uma extraordinária celebração dos vínculos de amizade que não se confundem com os laços familiares e que se afirmam entre sujeitos que não poderiam ser mais diferentes.
Desse ponto de vista, para provocar (mesmo assim, menos do que aquelas perguntas sinistras no palanque): talvez a verdadeira Marcha para Jesus em São Paulo tenha ocorrido no domingo. Foi a Parada Gay.
Contardo Calligaris
Italiano, é psicanalista. Deu aula de estudos culturais em NY. Reflete sobre cultura e modernidade.
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