segunda-feira, 11 de junho de 2018

Não se deve terceirizar para Ciro Gomes a luta contra Bolsonaro

Em novo artigo, Valerio Arcary diz que “a direção do PT tem o dever de encabeçar a luta contra Bolsonaro. Isso significa, neste momento, dar um passo em frente"

Por Valerio Arcary

As virtudes dos homens são semelhantes ao voo dos pássaros.
A ave que se habitua à paisagem rasteira perde o gosto pela altura.

Sabedoria popular indiana

Nada é tão poderoso neste mundo como uma ideia cujo momento chegou.

Sabedoria popular espanhola

A luta para tirar Bolsonaro do segundo turno das eleições de 2018 deve ser um dos eixos de todas as correntes da esquerda brasileira. Quem pensa que a luta contra Bolsonaro é somente uma luta eleitoral se engana. O combate contra os neofascistas não se reduz à arena eleitoral. A paralisação dos caminhoneiros deixou claro que a disputa contra a extrema-direita veio para ficar. Ela é uma batalha em todas as frentes.






Mas, quando ainda temos quatro meses de luta pela frente, tem crescido uma corrente de opinião que considera, precipitadamente, que este combate já estaria esgotado. Como se já fosse possível prever que Bolsonaro estará no segundo turno. Essa hipótese existe, e merece ser considerada, seriamente, mas não é mais do que uma hipótese. Nenhuma batalha termina antes que acabe. A pior derrota é a derrota sem luta.



Não é por outra razão que podemos acompanhar, nos locais de trabalho e estudo, nas redes sociais e nas conversas entre os ativistas, uma ansiedade por uma candidatura única de esquerda, ainda antes do primeiro turno. O medo daquilo que Bolsonaro representa alimenta a expectativa de que só uma candidatura de centro-esquerda poderia derrotá-lo. É este alarmismo que explica a pressão pelo apoio a Ciro Gomes.



Apoiar Ciro Gomes desde o primeiro turno significa terceirizar a luta contra Bolsonaro. Uma tarefa que Ciro Gomes, retoricamente, aceita, mas não pode cumprir. Não se luta contra Bolsonaro com ofensas pessoais. Isso é infantil. Só favorece a consolidação das relações de uma parte de sua base eleitoral. A luta contra Bolsonaro é uma luta política. Luta política não se faz com insultos, mas com propostas, com um programa. São as propostas concretas que podem separar Bolsonaro de uma parcela do eleitorado. Propostas como a redução da jornada de trabalho sem redução salarial, para que haja emprego para todos. Propostas como a elevação do salário mínimo, tendo como referência o piso de R$ 4.000,00 do Dieese. Propostas como a anulação da PEC do teto dos gastos, a anulação da reforma trabalhista, o fim da lei das terceirizações, e tantas outras.



Ciro Gomes não tem as mãos livres para o fazer. Não pode fazê-lo por, pelo menos, quatro razões profundas. Primeiro, porque nada é mais funcional para Ciro Gomes que o pânico de que Bolsonaro já está no segundo turno, e só ele pode atrair os votos da direita e da esquerda necessários para derrotá-lo; segundo, porque o lugar de disputa da candidatura Ciro Gomes é o espaço do centro, portanto, necessariamente, dialogando com a classe média contra a esquerda, que representa, em primeiro lugar, o impulso da mobilização popular; terceiro, porque defende um programa de ajuste fiscal calibrado para desbloquear o mercado interno, e precisa se diferenciar no primeiro turno de Alckmin, não de Bolsonaro; e quarto, porque articula alianças com dissidentes da base política de sustentação de Michel Temer, como Benjamim Steinbruch e PSB, além de flertar com Maia, o DEM e o centrão, portanto, piscando para direita.



Esta tarefa deve ser assumida, em primeiro lugar, pelas candidaturas de esquerda. A frontalidade da luta contra o neofascismo repousa, antes e depois das eleições, nas mãos da esquerda. Algumas analogias históricas podem ser instigantes. Devemos ter muito cuidado com a ideia do senso comum de que “quem tem juízo vota no mal menor”. Ou seja, deveríamos colocar a mão no nariz, e votar para nos protegermos do mal “maior”. Esta linha de raciocínio parece encarar de frente o perigo Bolsonaro, mas, na verdade, desconsidera, diminui e despreza a força dos neofascistas.



O mal menor em 1982 era Franco Montoro do MDB. Era ele o candidato a governador contra ninguém menos do que Maluf, o famigerado. Só que Lula era, também, candidato e chegou aos 10%. O impulso da campanha de 1982 foi chave para que o PT tivesse a iniciativa de chamar o comício de novembro de 1983, na Praça Charles Miller no Pacaembu, sob a bandeira Diretas Já. Sem esta iniciativa, como está bem documentado no livro de Dante de Oliveira e Domingos Leonelli, o comício de 25 de janeiro na Praça da Sé não teria sido chamado, e milhões não teriam saído às ruas para desafiar a ditadura. Nos vinte anos anteriores o MDB nunca chamou o povo às ruas para tentar derrubar a ditadura.



Em 1984, o mal menor era Tancredo Neves, candidato no Colégio Eleitoral, com Sarney de vice. E o PT chamou ao boicote. Se o PT tivesse apoiado Tancredo Neves, e participado do governo Sarney, a esquerda não existiria com peso de massas nas duas décadas seguintes. O PT teria se desmoralizado.



Em 1986, o mal menor era Orestes Quércia, o candidato do PMDB e do plano Cruzado, de novo contra Maluf. Pelo PT, Suplicy chegou aos 11%, criticando o plano Cruzado, que desmoronou seis meses depois da eleição. Só que Quércia ficou, e deixou como herdeiro, em 1990, o Fleury e o massacre do Carandiru. O mal menor contra Maluf, em 1988, era Serra, mas Luísa Erundina do PT venceu, porque na véspera das eleições Sarney mandou invadir a CSN em Volta Redonda, e três operários foram assassinados. Não morreram em vão. Em fevereiro de 1989, a greve geral contra o Plano Verão, de Maílson da Nóbrega, a maior da história, abriu o caminho para legitimar Lula no segundo turno.



Voto útil



Resumo da ópera: o voto só é útil quando não votamos contra nós mesmos, contra nossos interesses. Nenhum representante dos interesses da Avenida Paulista e Faria Lima é menos “mal”. Não tem sentido escolher quem quer te empurrar do terceiro andar, porque o candidato mais feroz quer te empurrar do décimo. Isso não é escolha. É uma armadilha.



As ideias e propostas dos neofascistas ganharam audiência nos últimos dois anos. Mas existem reservas nos batalhões mais organizados dos trabalhadores e da juventude. Existe uma força social muito mais poderosa que o desespero confuso e desorientado dos que clamam por uma “intervenção militar”. Nada é mais poderoso do que a força social desta maioria explorada e oprimida quando abraça com paixão e esperança uma luta justa. Ela pode ser despertada. Ela precisa ser chamada às ruas para lutar. Esse deve ser o papel da esquerda. Este tem sido o lugar da campanha Boulos/Sonia Guajajara.



Mas é necessário que o maior partido da esquerda acorde do seu sonambolismo. O PT tem o direito de apresentar Lula como o seu candidato à presidência. Mas a direção do PT tem, também, o dever de encabeçar a luta contra Bolsonaro. Isso significa, neste momento, dar um passo em frente. Cabe ao PT responder ao apelo que o PSOL tem feito por uma frente única de toda a esquerda contra os neofascistas.




Valerio Arcary

É professor titular do IFSP. Doutor em história pela USP, estudou na Universidade de Paris e Lisboa entre 1974/78, participou da revolução portuguesa, voltou ao Brasil e se uniu à Convergência Socialista, esteve presente na reconstrução da UNE em Salvador em 1979, na fundação do PT em 1980 e da CUT em 1983, sendo secretário-geral da CUT/São Paulo entre 1985/86. Atuou na Apeoesp entre 1983/90, foi membro da Executiva Nacional do PT entre 1989/92, e foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98 e, desde 2016 é membro da Coordenação Nacional do MAIS/PSOL. É autor de O martelo da história, entre outros livros.

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