sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A educação como privilégio de classe


O que o governo Temer pretende com a PEC 241 é dificultar ainda mais o acesso ao ensino superior

Luiz Ruffato

A educação como privilégio de classe Aos que não entenderam, vou desenhar

Em 2007, o escritor Raduan Nassar – autor da obra-prima Lavoura Arcaica – tentou doar sua fazenda Lagoa do Sino, situada em Buri, interior de São Paulo, para a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), com uma única condição: a de que as terras, transformadas em campus universitário, fossem utilizadas para propiciar acesso a jovens sem poder aquisitivo, incluindo filhos de trabalhadores rurais, negros e indígenas. A doação incluía mais de 3.500 m² de área construída, três pivôs centrais de irrigação, quatro silos armazenadores, dois secadores de grãos, sistema de secagem a gás, maquinaria (colheitadeira, tratores, pulverizadores), e muitos outros implementos. O estado São Paulo, à época governado por José Serra, rejeitou a oferta.


Três anos depois, Raduan Nassar conseguiu efetivar a doação para o governo federal, então sob o comando de Luiz Inácio Lula da Silva - hoje a fazenda pertence à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e vem cumprindo seu objetivo de democratização do ingresso no ensino superior. No entanto, o campus corre agora o risco de ser privatizado ou fechado por conta do estrangulamento de recursos, caso seja aprovada, em definitivo, a PEC 241, em discussão no Senado após tramitar pela Câmara dos Deputados. Se isso ocorrer, o escritor deixou claro que abrirá litígio contra a União por ver frontalmente contrariado o objetivo da doação.



A rara atitude de Raduan Nassar, de desprendimento pessoal e visão de coletividade, se notabiliza ainda mais quando nos sabemos mergulhados em uma sociedade doentiamente egoísta e individualista, que enxerga no próximo alguém a ser explorado ou confrontado, nunca aquele com quem possamos partilhar algo. Mas, infelizmente, a ação contrária, que se desenha em um horizonte próximo, de manter a educação não como direito, mas como privilégio de classe, não é novidade para os que agora estão no poder. O presidente não eleito, Michel Temer, apenas sistematiza o pensamento corrente da elite paulista (não por coincidência também elite tucana), que, acima de partidos, defende interesses ideológicos.



O sistema de cotas em universidades estaduais para alunos provenientes de escolas públicas existe no estado do Rio de Janeiro desde 2000 – no ano seguinte, estabeleceu-se também o critério de cotas raciais para negros ou pardos, adotadas por outros estados ao longo da primeira década do século XXI, incluindo cotas para indígenas. A partir de 2003, as universidades federais também instituíram pouco a pouco os sistemas de cotas, atualmente vigentes em todas elas, além de abolir o vestibular na maioria das instituições, substituído pelo resultado da prova do Enem, submetidas as vagas ao Sistema de Seleção Unificada (SISU). Mas não o estado de São Paulo, comandado pelos tucanos desde 1995, há 21 anos, portanto.



São Paulo possui três sistemas públicos de ensino superior – e apenas a Unesp, com campus espalhados por 24 cidades e oferta de cerca de 7 mil vagas, possui cotas para alunos provenientes de escolas públicas (45% do total), sendo que, destas, 35% são reservadas para negros, pardos ou indígenas, processo iniciado em 2014. As outras duas universidades, USP e Unicamp, permanecem alheias aos sistemas de cotas. Somente a partir do ano passado, a USP passou a disponibilizar parte de suas 11 mil vagas ao ingresso por meio do SISU. Para o próximo ano, serão 2,3 mil vagas, sendo 1,1 mil vagas para alunos vindos de escolas públicas e 586 para autodeclarados negros, pardos ou indígenas.



No entanto, quando observamos de perto esses números – já bastante modestos, 21% do total – nos deparamos com a mentalidade classista do processo: das 2,3 vagas a serem preenchidas pelo resultado da prova do Enem, mais da metade (1,2 mil) são destinadas às Humanidades – só a área de Letras absorve 252 candidatos. E as vagas para quem se autodeclarar negro, pardo ou indígena concentram-se em cursos como Pedagogia, Letras, Ciências Sociais, Filosofia, História, Geografia e licenciaturas em Ciências da Natureza e Matemática (322 vagas, 55% do total). Ou seja, aquelas carreiras pelas quais nossa elite, de forma equivocada, possui verdadeiro desprezo, pois destinam-se à formação de professores.



Outros cursos, considerados mais “nobres”, mantêm-se redutos exclusivos. Por exemplo, as várias engenharias oferecem um total de 1892 vagas, das quais 175 pelo SISU (9%) e 5 (sim, cinco!) para quem se autodeclarar negro, pardo ou indígena – enquanto nos cursos de Medicina, de um total de 275 vagas, apenas 10 são oferecidas pelo SISU e nenhuma para negros, pardos ou indígenas. Já a Unicamp, que possui outras 3,3 mil vagas, não participa diretamente do SISU e nem possui sistema de cotas – oferece bônus para alunos oriundos de escolas públicas e para quem se autodeclara negro, pardo ou indígena.



As universidades públicas brasileiras sempre foram espaço reservado para formação da nossa elite econômica, que também o é intelectual e politicamente. O panorama mudou um pouco com os sistemas de inclusão social – cotas para alunos oriundos de escolas públicas (em geral pobres) e para negros, pardos e indígenas. Mudou um pouco, repito, porque a grande massa de jovens pobres – seja de que etnia for – ainda tem que pagar para estudar em escolas privadas, em geral de péssima qualidade. Mas o que o governo Temer pretende com a PEC 241 é dificultar ainda mais o acesso ao ensino superior, realizando o desejo da nossa sociedade, que, como afirmou o ex-secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, defende a manutenção da pobreza para que continuem existindo cozinheiras, faxineiras, lavadeiras – ou, em outras palavras, para que subsista um exército de mão de obra disponível para o usufruto da casa grande.


El País






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