A democracia liberal como a conhecemos é uma invenção que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos. Sua base de sobrevivência foi a capacidade em orientar a política em direção a uma espécie de "luta pela conquista do centro".
Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores da social-democracia e do dito Estado de bem-estar social europeu. Mesmo os partidos comunistas da Europa, fortes até o final dos anos 1970, operaram no interior dessa lógica. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo em vistas à liberalização da economia.
O primeiro tremor neste pacto se deu com a leva neoliberal de Thatcher e Reagan. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal de Franklin Roosevelt foi desmontado por meio de uma política de retração do Estado e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais.
No entanto, os anos 1990 pareciam inicialmente implicar certa retração do horizonte neoliberal com a ascensão do que se chamou à época de "onda rosa". Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, o novo centro de Gerhard Schröder e a volta dos democratas com Bill Clinton demonstraram outra coisa.
Na verdade, tratava-se de um alarme falso. O que se viu foi apenas a consolidação da falência da social-democracia, seu enterro pelos próprios atores que, de certa forma, deveriam representá-la. A França de Lionel Jospin, com alguns tons de rosa mais vermelhos, foi apenas um ponto fora da curva, já que foi lá, em 1995, que ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado de bem-estar.
Essa conversão da "esquerda" à gestão de um neoliberalismo "com o rosto mais humano" era irreversível.
Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. Todos os atores políticos mundiais foram forçados a aplicar a mesma política de "austeridade", com suas contenções de gastos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável.
Nesse processo, os partidos de esquerda foram simplesmente dizimados, já que perderam de vez sua função de contraponto.
O resultado disso estamos vendo hoje. A ascensão de aberrações como Donald Trump, a protofascista Marine Le Pen, na França (em primeiro lugar nas pesquisas), e o Alternativa para a Alemanha, além da vitória do "brexit", são partes de um mesmo fenômeno. Essas escolhas expressam a ausência de escolha dentro da democracia liberal.
Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou, que seu acordo não existe mais. A crise econômica destruiu a democracia liberal e levou populações a irem em direção ao extremo em vez de aceitarem as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro.
Há uma certa ironia macabra nessa situação. Durante anos, a imprensa mundial tentou nos fazer acreditar que EUA e Inglaterra eram dois países que haviam deixado a crise econômica para trás com suas políticas de austeridade. No entanto, não é assim que pensam os próprios cidadãos desses países. Na verdade, eles escolheram discursos que insistiam na pauperização, na insegurança econômica, na precarização e no fim da globalização.
Daqui em diante, esta será a dinâmica política. Como não há mais acordo possível de conservação de conquistas sociais elementares, a política irá para os extremos. Só que, neste momento, a "esquerda" não consegue mais organizar um discurso de alternativa econômica. Em países como França e Alemanha (já que o SDP governa com a CDU há anos), foi ela que levou a cabo os choques de austeridade.
Nessa lógica, o único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita com sua mistura de discursos de proteção social e proteção paranoica contra tudo o que é tachado como "corpo estranho" no interior de um delírio identitário de vida social. Por isso, ela cresce vertiginosamente.
Qualquer um que tentar, mais uma vez, a lógica fracassada de conquista do centro tem seu lugar garantido no balcão de devoluções dos equívocos históricos.
Os tempos são outros.
Folha SP
Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores da social-democracia e do dito Estado de bem-estar social europeu. Mesmo os partidos comunistas da Europa, fortes até o final dos anos 1970, operaram no interior dessa lógica. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo em vistas à liberalização da economia.
O primeiro tremor neste pacto se deu com a leva neoliberal de Thatcher e Reagan. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal de Franklin Roosevelt foi desmontado por meio de uma política de retração do Estado e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais.
No entanto, os anos 1990 pareciam inicialmente implicar certa retração do horizonte neoliberal com a ascensão do que se chamou à época de "onda rosa". Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, o novo centro de Gerhard Schröder e a volta dos democratas com Bill Clinton demonstraram outra coisa.
Na verdade, tratava-se de um alarme falso. O que se viu foi apenas a consolidação da falência da social-democracia, seu enterro pelos próprios atores que, de certa forma, deveriam representá-la. A França de Lionel Jospin, com alguns tons de rosa mais vermelhos, foi apenas um ponto fora da curva, já que foi lá, em 1995, que ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado de bem-estar.
Essa conversão da "esquerda" à gestão de um neoliberalismo "com o rosto mais humano" era irreversível.
Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. Todos os atores políticos mundiais foram forçados a aplicar a mesma política de "austeridade", com suas contenções de gastos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável.
Nesse processo, os partidos de esquerda foram simplesmente dizimados, já que perderam de vez sua função de contraponto.
O resultado disso estamos vendo hoje. A ascensão de aberrações como Donald Trump, a protofascista Marine Le Pen, na França (em primeiro lugar nas pesquisas), e o Alternativa para a Alemanha, além da vitória do "brexit", são partes de um mesmo fenômeno. Essas escolhas expressam a ausência de escolha dentro da democracia liberal.
Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou, que seu acordo não existe mais. A crise econômica destruiu a democracia liberal e levou populações a irem em direção ao extremo em vez de aceitarem as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro.
Há uma certa ironia macabra nessa situação. Durante anos, a imprensa mundial tentou nos fazer acreditar que EUA e Inglaterra eram dois países que haviam deixado a crise econômica para trás com suas políticas de austeridade. No entanto, não é assim que pensam os próprios cidadãos desses países. Na verdade, eles escolheram discursos que insistiam na pauperização, na insegurança econômica, na precarização e no fim da globalização.
Daqui em diante, esta será a dinâmica política. Como não há mais acordo possível de conservação de conquistas sociais elementares, a política irá para os extremos. Só que, neste momento, a "esquerda" não consegue mais organizar um discurso de alternativa econômica. Em países como França e Alemanha (já que o SDP governa com a CDU há anos), foi ela que levou a cabo os choques de austeridade.
Nessa lógica, o único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita com sua mistura de discursos de proteção social e proteção paranoica contra tudo o que é tachado como "corpo estranho" no interior de um delírio identitário de vida social. Por isso, ela cresce vertiginosamente.
Qualquer um que tentar, mais uma vez, a lógica fracassada de conquista do centro tem seu lugar garantido no balcão de devoluções dos equívocos históricos.
Os tempos são outros.
Folha SP
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